A heroicidade de um apagamento total
O
grande êxito de sua vida foi aceitar o aparente fracasso de seu ideal,
conformando-se inteiramente à vontade divina. Nada foi aos olhos humanos, mas
foi santo aos olhos de Deus, que julga pelo coração, e não pelas aparências.
Rafael Arnáiz
Baron era rico, de nobre família, inteligente, elegante, simpático e alegre.
Tinha alma de artista e dotes de poeta, aprimorados por uma esmerada educação.
Cursava em Madri a Escola Superior de Arquitetura, apreciava os magníficos
concertos do Palácio da Música e freqüentava os bons restaurantes madrilenhos.
Diante de si, abria-se a perspectiva de uma carreira brilhante.
Aos 22 anos, ele
ouviu o convite de Jesus no interior de sua alma: “Renuncia a tudo isso, vem e
segue-Me”. Bem ao contrário do “moço rico” do Evangelho, atendeu com
prontidão e generosidade a esse chamado. Em sua curta vida, elevou-se a um alto
grau de santidade e deixou aos católicos uma importante mensagem: “Deus não exige de nós mais do que
simplicidade por fora e amor por dentro”.
Um menino privilegiado
Rafael Arnáiz
Barón nasceu em Burgos, Espanha, a 09 de abril de 1911, numa aristocrática
família. Seus pais, católicos fervorosos, educaram- -no com esmero na prática
dos Mandamentos e no amor à virtude. Aos 10 anos, vendo-se impossibilitado de
acompanhar seus colegas à Missa de domingo, por estar enfermo, suplicou a um
sacerdote que lhe levasse o Santíssimo Sacramento. Impressionado com a piedade
daquela criança, o padre acedeu e, a partir daí, Rafael nunca mais abandonou a
comunhão dominical.
Diante do olhar
profundo do jovem Rafael, seu futuro se descortinava em tons róseos e azulados.
Sua inteligência penetrante, a vivacidade de sua conversa e seu trato ameno
conquistavam-lhe todas as simpatias e aumentavam o atrativo natural que exercia
sobre os que dele se aproximavam. Um marcado pendor artístico veio completar o
encanto de sua pessoa.
Rafael, porém,
parecia feito mais para a contemplação das coisas celestes que para as
banalidades da vida terrena. Levava uma vida semelhante à dos outros moços de
sua idade, mas seu olhar voava com facilidade até Deus. Dir-se-ia que sua nobre
alma experimentava o exílio deste vale de lágrimas e ardia em desejos de horizontes
sublimes. A resposta da Providência a tais anseios, plantados por Ela mesma
naquele inocente jovem, não se faria esperar.
Na juventude, o despontar da vocação
Aos 19 anos,
estando na casa de seu tio em Ávila, foi solicitado a levar uma carta ao abade
do mosteiro cisterciense de San Isidro de Dueñas. Essa visita seria para ele a
clarinada reveladora de sua vocação.
"Aquilo que
vi e passei na Trapa, escreveria ele mais tarde, as impressões que tive nesse
santo mosteiro, não podem ser explicadas; pelo menos eu não sei explicá-las,
somente Deus o sabe. [...] O que mais me impressionou foi o canto da Salve
Regina, ao escurecer, antes de irem deitar-se. [...] Aquilo foi algo sublime.1
"
Com efeito,
desde a época de São Bernardo, era costume nos mosteiros cistercienses cantar a
Salve Regina em gregoriano logo após as Completas, em homenagem à Santíssima
Virgem. Diante da unção daquele hino entoado por mais de 50 religiosos
revestidos de brancos hábitos, Rafael sentiu-se convidado a imitá-los. Nesse
dia, o projeto de dar-se à vocação monacal começou a germinar em sua mente.
Ele continuou a
levar sua vida comum. Dados os seus dotes para o desenho, estudou dois anos na
escola de arquitetura, em Madri. Entretanto, a graça operara em seu interior
uma verdadeira transformação, como ele mesmo descreve: "Ali [na Trapa] a
sós com Deus e a própria consciência, muda-se o modo de pensar, o modo de
sentir e, o mais importante, o modo de agir nos atos do mundo.2 "
A decisão de abraçar a vida religiosa
Em 1933, estando
de novo em Ávila, Rafael surpreendeu seu tio com uma notícia: estava resolvido
a abandonar o mundo e ingressar na Ordem de Cister, sem mesmo avisar seus pais,
residentes ao norte do país, na cidade de Oviedo. Assim descreve seu tio a
impressão que lhe causou a decisão do sobrinho:
Rafael "era
débil fisicamente, mas a fortaleza que faltava a seu corpo tinha em sua alma
medida completa e transbordante. [...] Sua vontade era de aço; eu tinha a firme
convicção de que aquela determinação era de Deus; não era um capricho, nem uma
impressão, nem um engano; era o fruto divino de uma correspondência à graça,
que o Espírito Santo dignava-Se sustentar com um de seus mais preciosos dons: o
da fortaleza.3 "
Para demovê-lo
de sua resolução de não ir antes a Oviedo, seu tio recorreu ao Núncio
Apostólico, que se encontrava em Ávila. Ante o desejo da autoridade religiosa,
Rafael dobrou-se, por amor à obediência, reconhecendo naquela ordem o primeiro
passo rumo à cruz, que desejava abraçar.
Partiu para
Oviedo e lá, após comemorar o Natal numa aparente alegria, comunicou a seus
pais a decisão que tomara. Estes, como bons cristãos, acolheram- na com
verdadeira emoção, agradecendo a dádiva que o Senhor lhes concedia.
Uma nova etapa na vida do jovem Rafael
Para o jovem
Rafael começava uma nova etapa: deixava para trás as comodidades, o carinho
familiar, os passatempos mundanos, as promessas de um brilhante porvir.
Sobretudo, renunciava àquilo que a criatura humana possui de mais arraigado: a
vontade própria. Doravante esta se acharia inteiramente conformada à vontade
divina.
No dia 15 de
janeiro de 1934, as portas de Cister abriam-se para o jovem postulante. Seu
coração estava cheio de bons propósitos, que ele resumiu com estas palavras
escritas poucos dias antes: "Quero
ser santo, diante de Deus, e não dos homens; uma santidade que se desenvolva no
coro, no trabalho, sobretudo, no silêncio; uma santidade conhecida somente de
Deus e da qual nem mesmo eu me dê conta, pois, então, já não seria verdadeira
santidade.4 "
Essa santidade
seria alcançada em meio a indizíveis sofrimentos e provações, na aparente
inutilidade, sem em nada manifestar-se exteriormente.
O primeiro
período de vida religiosa foi para Rafael um verdadeiro paraíso. Se os jejuns e
as mortificações por vezes arrancaram-lhe algumas lágrimas, sua alma sentia-se
inundada de consolações. A humildade que demonstrava ao acusar-se de suas
faltas no capítulo de culpas e sua atitude estática diante do tabernáculo
impressionavam favoravelmente a comunidade, que logo se lhe afeiçoou.
A dura prova da enfermidade
Para Rafael, o
rompimento com o mundo já ficara definitivamente para trás. Porém, não eram
estes os desígnios divinos. Gozava de grande felicidade espiritual quando, em
maio, sentiu os primeiros sintomas da doença que o levaria à morte. O
abatimento de suas forças obrigou-o a ser transferido para a enfermaria. Pouco
tempo depois, o médico diagnosticava uma diabetes sacarina que progredia de
forma alarmante e exigia um tratamento apropriado, que só poderia ser-lhe
ministrado fora do mosteiro...
Começava para
ele a subida ao calvário, a aceitação submissa do cálice que lhe era oferecido.
Via-se obrigado a voltar para o mundo, ao qual tão generosamente havia
renunciado!
Seu confessor,
Pe. Teófilo Sandoval, narra a cena de sua partida do mosteiro:
"Os
suspiros e as lágrimas do angustiado Rafael faziam-me ver que em seu interior
se desenrolava uma tremenda crise espiritual que lhe oprimia o coração. Quando
deixei o mundo - dizia-me - despedi-me de todos até a eternidade, e pela
imprensa, Astúrias inteira soube que a graça havia triunfado em mim, sobre a
natureza... Agora volto para lá desfeito, inútil, com a mortalha dentro da
mala... O que dirá o mundo, tão propenso a se escandalizar? Eu quero morrer
aqui, quisera que esta noite fosse a última de minha vida! Diante dessas
expressões, compreendi que Rafael havia penetrado na terrível noite escura do
sentido, do coração.5 "
Rafael voltou
para sua casa. Em poucas semanas verificou-se uma melhora em sua saúde e pôde
retomar a vida normal. Exteriormente aparentava ser o mesmo Rafael de antes,
com sua alegria contagiante e sua sensibilidade artística. Uma profunda
mudança, porém, efetuara-se em sua alma, modelando-a por inteiro. Experimentava
outra alegria, aquela que só às almas amantes da cruz é dado conhecer.
Assim escreveu
ele a um de seus superiores, alguns dias depois de sua saída do mosteiro:
"Quando fui para a Trapa, entreguei-Lhe [a Deus] tudo quanto tinha e tudo
quanto possuía: minha alma e meu corpo... Minha entrega foi absoluta e total.
Justo é, pois, que Deus agora faça de mim o que Lhe pareça e o que Lhe agrade,
sem queixa alguma de minha parte, movimento algum de rebeldia. [...] Deus não
somente aceitou meu sacrifício, quando deixei o mundo, mas pediu-me maior
sacrifício ainda, o de voltar a ele... Até quando? Deus tem a palavra. Ele dá a
saúde, Ele a tira.6 "
Essas palavras
refletem bem o espírito de obediência com o qual acolhia a prova enviada pela
Providência. Um ano e meio haveria de durar aquele exílio, durante o qual seu
amor a Deus não fez senão crescer e sublimar-se. Ao ingressar na Ordem
Cisterciense, despojara-se de tudo, mas conservava ainda o desejo de chegar a
ser um bom trapista, de se tornar sacerdote; buscava-se a si mesmo, como mais
tarde afirmaria. Deus, como Pai boníssimo, educava-o de forma a purificar sua
alma daquelas asperezas tão legítimas, mas ainda humanas.
Por fim, Rafael
implorou ser readmitido na Trapa na qualidade de oblato, uma vez que seu estado
de saúde não lhe permitia adaptar-se ao regime da vida monacal.
Em janeiro de
1936, entrou por segunda vez. Lá o esperavam novas tribulações: isolado na
enfermaria, sujeito a um regime alimentício que provocava críticas dos
companheiros, sofrendo incompreensões de alguns de seus superiores, Rafael
sentia-se inteiramente só. Dada sua debilidade física, proibiram-lhe até de
participar do cântico do Ofício na igreja. A esses sofrimentos juntavam-se
terríveis tentações que lhe sugeriam a ideia de ter errado de vocação. Ele tudo
enfrentava com vigor de espírito e um inalterável sorriso nos lábios.
Ainda por duas
vezes a enfermidade o tiraria de sua amada abadia, mas novamente a ela
voltaria, convencido de ser aquele o lugar que lhe designara a vontade divina,
apesar dos obstáculos que esta mesma parecia lhe opor.
Os últimos meses de vida
Os derradeiros
meses da vida de Rafael foram os últimos passos até o cimo do calvário que se
propusera galgar, como o refletem os escritos dessa época, embebidos de intensa
espiritualidade e amor à perfeição.
Sua alma atingia
aquela indiferença recomendada por Santo Inácio, pela qual o homem nada deseja
para si e deixa-se levar pelo beneplácito divino. Uma única paixão dominava-
lhe o coração: Deus!
"Tudo o que
faço, é por Deus. As alegrias, Ele as manda; as lágrimas, Ele as dá; o
alimento, tomo-o por Ele; e quando durmo, faço-o por Ele. Minha regra é Sua
vontade, e Seu desejo é minha lei; vivo porque a Ele apraz, morrerei quando Ele
quiser. Nada desejo fora de Deus. [...] Quisera que o universo inteiro - com
todos os planetas, os astros todos, e os inúmeros sistemas siderais - fosse uma
imensa superfície lisa onde eu pudesse escrever o nome de Deus. Quisera que
minha voz fosse mais potente que mil trovões, e mais forte que o ímpeto do mar,
e mais terrível que o fragor dos vulcões para só dizer ‘Deus'. Quisera que meu
coração fosse tão grande quanto o Céu, puro como o dos Anjos, simples como a
pomba para nele ter a Deus.7 "
Entretanto, a
enfermidade progredia a passos rápidos. Rafael padecia fome - o irmão
enfermeiro não lhe proporcionava os alimentos que a doença exigia - e,
sobretudo, sede... Uma sede insaciável e devoradora que o acompanharia até os
últimos instantes. Ele, porém, nada deixava transparecer no exterior, dando a
todos a impressão de encontrar-se melhor.
No fim do mês de
abril já não pôde mais ocultar seu alarmante estado. Aos delírios da febre
sucediam-se instantes de lucidez, durante os quais manifestava-se sereno e
resignado. Recebeu a unção dos enfermos no dia 25, mas Deus pediu-lhe o
sacrifício de ver-se privado do viático. Às palavras alentadoras que lhe
dirigiam os monges, procurando infundir-lhe a esperança da cura, Rafael
respondia estar convencido de que logo partiria para o Céu.
Faleceu na manhã
do dia 26 de abril de 1938, em consequência de um coma diabético. Sua
fisionomia plácida e seu sorriso refletiam a glória de que sua alma já gozava
na eterna bem-aventurança.
Uma alma enamorada de Cristo
Sob o ponto de vista
humano, sua curta vida parece ter sido um monumental fracasso: não completou a
carreira, não se projetou na sociedade, não realizou seus sonhos de sacerdócio,
nem mesmo teve o consolo de observar a regra trapista e emitir os votos.
Não foi assim
aos olhos de Deus, que não julga pelas aparências, mas sim segundo o coração.
Rafael praticou uma forma de santidade peculiar: sua alma enamorada de Deus
atingiu a heroicidade das virtudes em meio ao silêncio, à dor e ao apagamento
mais completos.
Sirva-nos seu
exemplo de humildade e de caridade ardente para, também nós, aceitarmos com
alegria aquilo que a Divina Vontade quiser nos mandar.
"Dei-me
conta de minha vocação. Não sou religioso... não sou leigo..., nada sou...
Bendito seja Deus, não sou nada mais que uma alma enamorada de Cristo. [...]
Vida de amor, eis minha Regra... meu voto... Eis a única razão de viver.8
"
1) RAFAEL. Obras
Completas. Preparadas por Fray Maria Alberico Feliz Carbajal. 4. ed. Burgos:
Editorial Monte Carmelo, 2002, pp. 23-31.
2) Idem, ibidem,
p.47.
3) Idem, ibidem,
p. 92.
4) Idem, ibidem,
p. 123.
5) Idem, ibidem,
pp. 193-194.
6) Idem, ibidem,
pp. 200-201.
7) Idem, ibidem,
pp. 788 e 831-832.
8) Idem, ibidem,
pp.795-796.
(Irmã Clara Isabel Morazzani Arráiz, EP)
Apêndice
Voto de amar sempre a Jesus (São Rafael Arnáiz
Barón)
“Na oração desta manhã fiz um voto. Fiz o voto
de amar sempre a Jesus.
Me dei conta de
minha vocação. Não sou religioso..., não sou leigo..., não sou nada... Bendito
Deus, não sou nada mais que uma alma enamorada de Cristo. Ele não quer mais que
meu amor, e me quer desprendido de tudo e de todos.
Virgem Maria,
ajuda-me a cumprir meu voto!
Amar a Jesus, em
tudo, por tudo e sempre... Só amor. Amor humilde, generoso, desprendido,
mortificado, em silêncio… Que minha vida não seja mais que um ato de amor.
Bem vejo que a
vontade de Deus é que não faça os votos religiosos, nem seguir a Regra de São
Bento. Hei de querer, eu, o que não quer Deus?
Jesus me manda
uma enfermidade incurável; é sua vontade que humilhe minha soberba ante as
misérias de minha carne. Deus me envia a enfermidade. Não hei de amar tudo o
que Jesus me envie?
Beijo com imenso
carinho a mão bendita de Deus que dá a saúde quando quer e a tira quando Lhe
apraz.
Dizia Jó, que depois
recebemos com alegria os bens de Deus. Por que não havemos de receber assim
também os males? Mas acaso tudo isso me impede de amar-Lhe?... Não, com loucura
devo fazê-lo.
Vida de amor,
eis aqui minha Regra..., meu voto... Eis aqui a única razão de viver.
Começa o ano de
1938. Que me prepara Deus nele? Não sei... Talvez não importe?... Fora
ofender-Lhe tudo o mais dá no mesmo... Sou de Deus, que faça comigo o que
quiser. Eu hoje Lhe ofereço um novo ano, no qual não quero que reine mais que
uma vida de sacrifício, de abnegação, de desprendimento, e guiada somente pelo
amor a Jesus, por um amor muito grande e muito puro.
Quisera meu
Senhor, amar-Te como ninguém. Quisera passar esta vida tocando o chão somente
com os pés, sem deter-me em olhar em mim tanta miséria, sem deter-me em nenhuma
criatura, com o coração abrasado de amor divino e sustentado pela esperança.
Quisera, Senhor,
olhar somente ao céu, onde Tu me esperas, onde está Maria, onde estão os santos
e os anjos, bendizendo-Te pela eternidade e passando pelo mundo somente amando
tua lei e observando teus divinos preceitos.
Ah, Senhor,
quanto quisera amar-Te!.... Ajuda-me, minha Mãe!.
Hei de amar a
solidão, pois Deus nela me põe.
Hei de obedecer
às cegas, pois é o que Deus me ordena.
Hei de
mortificar continuamente meus sentidos.
Hei de ter
paciência na vida de comunidade.
Hei de
exercitar-me na humildade.
Hei de fazer
tudo por Deus e por Maria”.
Um comentário:
Muito obrigada! desconhecia a existência deste grande Santo...
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