Num intervalo
de 200 anos, o Senhor se dignou nos dar em São Félix de Nicosia (1715) uma identificação com
São Félix de Cantalício (1515). É surpreendente a coincidência nas mais
importantes datas de suas vidas: ambos entraram nos Capuchinhos aos 28 anos;
professaram aos 29, e aos 72, sendo Irmãos leigos, concluíram a sua meritória
jornada.
De família
pobre e numerosa, Félix de Nicosia teve de adiar o ingresso na vida religiosa
para procurar, como sapateiro, o seu sustento. Por isso, desde criança, habituou-se
à santa paciência, com uma vida bondosa e de quotidiano sacrifício. Reza e
espera... Espera e reza...
Mas,
finalmente, Deus dignou-se ouvir o seu clamor ardente. Como lhe batia o coração
a primeira vez que, radiante e ansioso, foi pedir aos Capuchinhos que o
recebessem! Queria ficar com eles para melhor salvar a sua alma! Foi fácil de
ver, naquele jovem já maduro, a sua total predisposição para o bem e o perfil de
um santo. Grande seria a responsabilidade dos Superiores se, com tal têmpera,
lhe tivessem roubado o manto da glória.
E, de fato,
não faltou esse hábil discernimento. O padre Macário, superior austero e capaz,
religioso estimado pelos confrades e por toda a gente, espera, de propósito e
com desapiedada firmeza, fazer dele um homem de Deus, estimulando-o a subir até
ao vértice do genuíno heroísmo. Para conseguir tal objetivo, usou um método
educativo parcial, estranho e, até mesmo, injusto, que seria sem dúvida
reprovável e condenável, se não reconhecêssemos em tudo isso o dedo de Deus.
Habitualmente padre Macário não o chamava pelo seu nome de Félix, mas por um
apelido humilhante: "Frei Descontente". Contudo, dos seus lábios não
se ouvia mais do que esta resposta: "Seja pelo amor de Deus sua santa
caridade".
Uma noite,
Frei Félix, totalmente absorto em meditação, não se dá conta do sinal para o
jantar e entra no refeitório depois da bênção da mesa. "De pé" -
grita o padre Guardião à comunidade - "Eis o peregrino que vem de
Meca". O humilde irmão ajoelha-se, beija o chão e agradece. Vai depois,
tranquilamente, para o seu lugar. Mas o padre Macário continua: "Como
ousas, Frei Descontente, depois de ter perturbado os religiosos, sentar-te à
mesa? Vai comer no curral: é lá o teu lugar". Não dando sinais de qualquer
perturbação, Frei Félix levanta-se, beija o chão e sai. Passados poucos
minutos, o Superior manda ver o que se passa: ele estava de joelhos, num ângulo
do curral, comendo a sua comida em paz. "Ide chamá-lo". Ele vem. O
mesmo acolhimento anterior: "De pé! Eis o peregrino que vem de Meca".
Depois acrescenta: "Desta vez, Frei Descontente, vais para o teu lugar,
mas de agora em diante não perturbes mais a família religiosa". Era assim
todos os dias; era assim quase todas as horas. Não seria demais?
Certa vez veio
ao convento um cavalheiro saudar um amigo. Encontra o servo de Deus: "Oh,
Frei Félix, como está?" "Bem, Deus seja louvado". E o amável
esmoleiro oferece-lhe a cigarreira, que consistia num simples pedado de cana,
fechada por uma tira de lata. Logo o vozeirão do padre Macário se fez ouvir:
"Mas, que modo de proceder é este, Frei Descontente"? Frei Félix
ajoelha-se diante do Superior. "Que impostura andas por aí a contar? Que
és um santo? Que fazes milagres? É para mostrar que tens amor à santa pobreza
que metes debaixo do nariz deste nosso benfeitor a tua imunda cigarreira? Vai
para o quarto imediatamente! Andas sempre em lugares de passagem, à espera dos
seculares para lhes dar a entender que és um santo. Desaparece daqui,
hipócrita". - "Seja pelo amor de Deus". E Frei Félix retira-se,
calmo e inalteravelmente, em
paz. O cavalheiro fica atônito e, depois de um momento de
nervosismo, diz: "Caro padre Guardião, se agísseis comigo assim,
ter-vos-ia atirado à cara o primeiro objeto que me viesse às mãos; depois
abriria a porta e desapareceria". E o padre Macário: "Meu bom amigo,
se conhecesses os tesouros de humildade, de paciência, de mansidão, escondidos
no nosso Frei Descontente, compreenderias e desculparias o meu modo de agir.
Todos os incômodos e todas as injustiças do próprio inferno não poderão
perturbar-lhe a serenidade. O meu dever? O meu dever é de ajudá-lo no exercício
das preciosas virtudes e de fazê-lo sempre mais amigo de Deus". Acabou o
espanto, cresceu a admiração, confortou o bom exemplo.
E os
prodígios! Quando um homem chega a tanta virtude, tem o poder de Deus. No
regresso de pedir esmola, Frei Félix parava sempre diante de uma imagem de
Nossa Senhora das Dores. Um dia, uns garotos, vendo-o imerso em profunda
oração, aproximam-se devagarzinho, sem fazer barulho, e metem-lhe no alforje
dois grandes pedaços de pedra. Frei Félix não se dá conta e, terminada a
oração, entra tranqüilamente no convento. Contudo, uma pessoa vira, de longe, a
brincadeira dos rapazolas e prontificou-se a denunciar os culpados. "Boa
senhora - responde-lhe o Irmão encarregado do refeitório - na saca apenas
encontrei pão, embora alguns pedaços tivessem forma e volume maiores que o
costume". Noutra ocasião, após brincadeira semelhante, enquanto ele rezava
diante da sua Virgem Dolorosa, os autores da proeza, como se nada fosse,
dizem-lhe: "Frei Félix, faz a caridade de nos dar um pouco de pão"?
"Tendes fome, filhos do Senhor? Eis"! Mete a mão no alforje e tira
alguns pães. Tinham a forma de pedras; mas eram mesmo pães. E oferece-lhos. Os
desordeiros ficam atrapalhados, olham uns para os outros, refletem e aprendem a
lição.
Uma outra vez,
andava o irmão com o seu habitual alforje - heróico e admirável alforje -
quando uma bondosa senhora se aproxima, a chorar, e lhe pede que vá com ela a
um pobre moribundo. "Sim, sim, minha boa cristã". A casa era muito
pobre e a escada bastante empinada e escura. O doente encontrava-se num mísero
quarto, agonizando. Antes de entrar, Frei Félix tira o alforje, dependura-o num
raio de sol que entrava por uma fresta, e, maravilha das maravilhas, aí fica
suspenso. A primeira a dar-se conta foi uma menina: "Mamã, mamã, vem ver:
Frei Félix dependurou o alforje num raio de sol, pensando que fosse uma
trave"!
E os milagres
da obediência! Como já vimos, que Frei Félix estava totalmente nas mãos do
padre Macário: boas, mas tremendas mãos! Tentará, porventura, nosso Frei
escapar-se-lhe alguma vez? Nunca! As mãos do Superior são as mãos de Deus. E
jamais se permitirá fazer alguma observação a qualquer ordem.
No quarto do
padre Guardião encontram-se um dia uns cavalheiros, falando sobre Frei Félix.
E, como ele estava no convento, desejam vê-lo. O padre Macário chama-o:
"Frei Félix, toma esta bilha, vai depressa àquela cisterna e traze-ma
cheia". Ele, diligente, dirige-se à escada. "Depressa - grita o
Superior - que estes meus amigos não podem demorar: vai pela janela". Frei
Félix, sem dizer uma palavra, salta o peitoril da janela, cai sobre o teto do
gracioso claustro e ei-lo lá em baixo, sem medo, sem qualquer arranhão, como se
fosse um passarinho, para grande admiração de todos.
São Francisco amava os animais, porque eram também criaturas de Deus. Chamava-os "irmãos" e "irmãs": "Irmãos passarinhos, irmãs cotovias." Trata-se duma herança transmitida aos seus filhos. Também nisso Frei Félix era uma delicada e encantadora alma franciscana. Perto de Nicosia, vivia, longe dos homens, mas perto de Deus, um eremita; alimentava-se do silêncio, da solidão e do diálogo com Deus. O povo tinha-lhe veneração e, confiadamente, recorria às suas orações.
São Francisco amava os animais, porque eram também criaturas de Deus. Chamava-os "irmãos" e "irmãs": "Irmãos passarinhos, irmãs cotovias." Trata-se duma herança transmitida aos seus filhos. Também nisso Frei Félix era uma delicada e encantadora alma franciscana. Perto de Nicosia, vivia, longe dos homens, mas perto de Deus, um eremita; alimentava-se do silêncio, da solidão e do diálogo com Deus. O povo tinha-lhe veneração e, confiadamente, recorria às suas orações.
Sabemos que os
santos se entendem admiravelmente. O eremita, não se sabe bem por quem, veio a
saber que Frei Félix, o esmoleiro dos Capuchinhos, caíra doente. "Sim,
sim, vou enviar-lhe um presente, um presente que o ajude a restabelecer-lhe as
forças". Escolhe o mais belo pombo que tinha e, adivinhando que o servo de
Deus não teria coragem para o matar, ele mesmo corta-lhe o pescoço. Vai
depressa levar a pobre ave a Frei Félix, regressando imediatamente ao seu pobre
eremitério. Frei Félix fica radiante pela visita; escuta as palavras do Irmão
enfermeiro, abre os olhos, levanta-se sobre a mísera cama, toma entre as suas
trêmulas mãos o inanimado pombo, olha-o bem, começa a acariciá-lo e diz-lhe:
"Ó formosa avezinha do bom Deus, por que estás morta"? E, enquanto
fala, continua a passar-lhe suavemente as mãos nas suas belas asas, as asas de
seus vôos. E eis que a ave começa a se mover, a agitar, e, viva como dantes, salta-lhe
sobre os ombros. A janela está aberta: "Vai, pequenina criatura de Deus;
regressa ao teu ninho". Quando o eremita chegou ao seu eremitério, o pombo
arrulhava, alegremente, em cima do pequeno telhado.
Em toda a
história de Frei Félix, percebemos a manifestação da ação divina pelos muitos
milagres. E o mais extraordinário de todos foi a sua bem-aventurada morte. O
padre Macário não o queria deixar partir. No seu pobre leito, depois de tantos
sofrimentos e tantas cruzes, o bom Irmão encontrava-se completamente desfeito;
era mais do céu que da terra. Esperava apenas a tão desejada obediência para o
vôo derradeiro. Mas a obediência não chegava. Mostrava todos os sinais da
morte, mas estava ainda na vida. O médico, deveras assombrado, diz para o
Guardião: "Padre, Frei Félix está certamente morto, há já três horas pelo
menos; contudo ele ainda tem alma. Não compreendo nada"! O padre Macário
explicou-lhe o mistério. Se o soubessem, até as pedras se comoveriam.
"Então, por que não permites que ele deixe este vale de lágrimas?"
Finalmente, o padre Macário, deixando cair a habitual máscara de
impassibilidade, prorrompe em soluços. Aproxima-se do santo Irmão, cuja
admirável vida tinha sido um exemplo edificante para todos e, sinceramente
comovido, dirige-lhe as últimas palavras e a primeira saudação: "Frei
Félix, se é vontade de Deus que deixes imediatamente a terra, em nome da
adorável Trindade, em nome do Seráfico Pai São Francisco, eu te abençôo".
Era a libertação. Frei Félix partiu ao encontro de Deus. Era o dia 31 de maio
de 1787.
Desde então, a
fama da sua santidade difundiu-se por toda a parte, especialmente na Sicília. A
sua simples e paciente vida ficou como um forte convite à sua imitação por
todos os Irmãos.
Pela sua
intercessão, os prodígios continuaram. Pio IX declarou as suas virtudes
heróicas em 1862 e, 26 anos depois, a 12 de fevereiro de 1888, Leão XIII o
incluiu entre os Beatos. E, finalmente, em 23 de outubro de 2005, o Papa Bento
XVI o declarou Santo: São Félix de Nicosia.
Oração:
Ó Senhor Deus, que ensinaste ao teu confessor São
Félix de Nicósia a servir-Te com simplicidade e humildade e a dispor o seu
coração a admiráveis ascensões, concedei-nos benigno, que depois de haver
imitado os seus exemplos na terra, possamos participar no Céu da sua glória.
Por Nosso Senhor Jesus Cristo,vosso Filho, nosso Irmão, na unidade do Espírito
Santo. Amém.
-x-x-x-x-x-x-x-x-x
Segundo texto
O primeiro
santo Capuchinho, Félix de Cantalício, contribuiu para dar um tom particular de
simplicidade, de humildade, de pobreza e de alegria à santidade Capuchinha,
tornando-se quase um modelo insubstituível para muitos de nossos irmãos não
clérigos.
Assim foi para
Tiago Amoroso, o nosso São Félix de Nicosia. Na terra fértil da Sicília, em
1743, com 28 anos, iniciou, no convento de Mistretta, o ano de noviciado,
assumindo também no nome a figura e o exemplo do santo frade Félix de
Cantalício, canonizado uns 30 anos antes. Mas não tinha sido fácil esta sua
vocação, não obstante tivesse ele transcorrido a sua juventude de maneira
extraordinariamente virtuosa, porque os seus pais, Felipe Amoroso e Carmela
Pirro, que o receberam de Deus no dia 05 de novembro de 1715, tendo já uma
grande família pobre de bens, mas ricos do temor de Deus e no testemunho
cristão.
O Pai Felipe,
sapateiro, queria também que o filho se especializasse na sua profissão e para
isso o enviou a João Ciavarelli que tinha a melhor sapataria da cidade com
muitos empregados.
Ainda muito
jovem começou a freqüentar a Pia união dos "Cappuccinelli" no
convento de Nicosia e se inscreveu e vestia a capa dos congregados, com um
pequeno capuz franciscano, assimilando bem a espiritualidade Capuchinha,
espiritualidade que estava presente em todos os seus atos e durante o seu
trabalho. Se alguém o ofendia, simplesmente dizia: "Seja por amor de
Deus", o que se transformaria num programa de toda a sua vida. Desde
quando era "Cappuccinello", ouvindo soar o sino do convento vizinho
dos Capuchinhos, se colocava de joelhos a rezar e convidava também os
companheiros: "Está na hora das completas, servos de Deus rezemos o santo
rosário à Virgem Santíssima".
Queria muito
ser Capuchinho, mas como era muito jovem teve que esperar muitos anos ainda.
Aos dezoito anos bateu à porta do convento para ser recebido como frade não
clérigo, porque não tinha recebido instrução acadêmica. Recebeu sempre um não,
porque a pobreza da sua família exigia a sua contribuição insubstituível no
trabalho para sustento da mesma. Mortos os pais, Tiago pediu novamente ao novo
provincial dos Capuchinhos, Padre Boaventura de Alcara, em visita a Nicosia,
para ser recebido.
Finalmente,
depois de 10 (dez) anos de espera, o "Cappuccinello" podia se tornar
um completo frade Capuchinho, decidido, com o nome de Felix de Nicosia, no
mesmo caminho de São Felix de Cantalício, inclusive com surpreendentes
coincidências: noviciado aos 28 anos, profissão aos 29, esmoler por 43 anos em
Nicosia, sua terra (assim como São Félix em Roma) e morte aos 72 anos.
"Bisaccia eroica" o definirá uma bibliografia popular de Icilio
Felici.
Depois do ano
de noviciado em Mistretta, Frei Félix foi enviado para Nicosia, onde fez o
esmoler (questuante) por toda vida, tornando-se na cidade uma presença de
espiritualidade radicada na população e por isso intocável. Ele permaneceu
sempre no convento de Colle dos capuchinhos de Nicosia. No convento se prestava
a todo serviço: porteiro, hortelão, sapateiro, enfermeiro.
Para esmolar
ia mais adiante de Nicosia e atingia Capizzi, Cerami, Gagliano, Mistretta e
outros lugares. De casa em casa, muito recatado e mortificado, silencioso, a
coroa na mão, caminhava. A sua única palavra era o "Seja por amor de
Deus".
Nas estradas
instruía as crianças na catequese, atraindo-as com pão e favas. Como São Félix
de Cantalício, ele ensinava pequenas canções.
Quando
encontrava pobres que transportavam lenha ou outras coisas pesadas, ele se
prestava em ajudá-los.
Não ficava contente enquanto não pudesse fazer qualquer coisa
pelos necessitados. Para os doentes estava sempre pronto para servi-los, dia e
noite. Todos os domingos ia visitar os encarcerados e leva-lhes alimento.
Frei Félix era
analfabeto. A sua devoção era simples, a palavra um fato da vida, não uma
consideração intelectual. Era devotíssimo da Eucaristia, da Virgem das Dores e
de Jesus Crucificado.
Seria
interminável recontar os numerosos fatos e anedotas acontecidos durante toda a
sua vida.
Acabado pelos
muitos trabalhos, o físico alquebrado pelas muitas penitências e mortificações,
estava sempre pronto para qualquer forma de serviço, sobretudo para os doentes
na enfermaria do convento. Enquanto as forças diminuíam nos seus 72 anos de
vida, crescia em intensidade a sua concentração em Deus e a sua simples
obediência. Se de Francisco de Assis se diz que se tornara a personificação da
oração, de Frei Félix de Nicosia se poderia dizer que era a obediência em
pessoa, como ato de puro amor. E foi esta a sua última e única mensagem. No
final do mês de maio de 1787, no seu leito, recebidos os sacramentos,
recomenda-se ao Pai São Francisco e invoca também Nossa Senhora. Sexta, 31 de
maio, pede ao seu superior a obediência para morrer, e recebido o consentimento
diz: "Seja por amor de Deus", inclinando a cabeça.
(Frei
Eurípedes Otoni da Silva - OFMCap.)
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