Com a presença do Rei Alberto II da Bélgica e de sua
esposa, a rainha Paola Ruffo de Calábria, o Santo Padre Bento XVI canonizou o
Pe. Damião de Veuster (ou de Molokai), Apóstolo dos Leprosos.
Nascido em Flandres, na Bélgica, o Pe. Damião abraçou
a vida religiosa, tendo se radicado no Havaí onde, cumprindo a missão que lhe
foi designada por seus superiores, exerceu frutífero ministério em uma colônia
de leprosos, tornando-se também um deles.
"Adeus,
mamãe; até o céu": tais foram as
palavras de despedida do jovem religioso Damião de Veuster, ao aproveitar um
transporte que inesperadamente surgiu no caminho que trilhava a pé após fazer
uma peregrinação ao santuário mariano de Montaigu acompanhado de sua mãe e de
uma cunhada. Era o início de sua viagem sem retorno para o longínquo Reino do
Havaí.
Na verdade, quem deveria ir para o Havaí em missão
religiosa era seu irmão mais velho Panfílio, que o precedeu ingressando na
Congregação dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria e da Adoração ao
Santíssimo Sacramento do Altar. A viagem de Panfílio fora cancelada por motivo
de doença e assim Damião, que almejava ser missionário, aproveitou-se disso e
pediu ao superior que o permitisse partir como substituto.
Nascimento,
infância e adolescência
Seu nome de nascença era Jozef (carinhosamente
reduzido para Jef, na intimidade), tendo vindo ao mundo em 03 de janeiro de
1840, em Tremelo, na região flamenga da Bélgica. Batizado no mesmo dia em que
nasceu, era o penúltimo de uma série de oito filhos do casal Jan Frans e Catherine,
que trabalhavam na área rural. A feliz família - da qual alguns membros
demonstraram vocação religiosa - guardava respeitosamente os domingos e dias
santos, nos quais nem mesmo a costura era permitida: missa pela manhã, vésperas
à tarde, e também descanso e recolhimento. Às refeições a oração era conduzida
pela zelosa mãe, em latim.
A vocação religiosa pouco a pouco desabrochava no
pequeno Jef. Certa vez ele e seus irmãos Paulina e Augusto resolveram passar um
dia inteiro em oração e penitência na solidão de um bosque, como anacoretas
(nem mesmo lançaram mão do lanche que haviam levado). Mas foi na adolescência
que o chamado tornou-se cada vez mais forte, apesar da vontade contrária de
seus pais, a quem chegou a dizer: "deixem-me
entrar no convento, ou Deus os castigará".
Recebe o
hábito da Congregação dos Sagrados Corações
Aos dezoito anos a vocação religiosa já estava
profundamente enraizada na sua alma. Em janeiro de 1859, acompanhando o pai em
uma visita a seu irmão Augusto (que já ingressara na Congregação dos Sagrados
Corações), em Louvain, foi deixado por algumas horas no convento enquanto o Sr.
Franz tratava de outros assuntos na cidade, mas quando este passou pela casa
religiosa para buscá-lo, Jozef pediu para ficar, pois isso evitaria a dor das
despedidas no lar: a permissão foi então dada pelo pai, que já pressentia que
isso iria acontecer. Em menos de dois meses recebeu o hábito religioso,
passando a chamar-se Damião, iniciando assim o noviciado (que na ocasião se
estendia por 18 meses). Logo demonstrou grande habilidade no aprendizado do
latim (a se ressaltar: ele já houvera sido recusado em um seminário ao qual se
dirigiu por sua própria iniciativa, sob alegação de ser rude e de desconhecer
outros idiomas além do flamengo, sua língua natal).
Vivendo em ambiente religioso, surgiu em Damião a
vocação para missionário, e passou ele a rezar diariamente nessa intenção junto
à figura de São Francisco Xavier, apóstolo da Índia, pintada em uma janela.
Posteriormente, quando ordenado presbítero, passou a usar as palavras
"sacerdote missionário" após sua assinatura, hábito que manteve por
toda a vida, assim definindo-se.
Os Sagrados
Corações Protagonista de um simbólico funeral
Findo o noviciado, era o momento dos solenes votos
perpétuos de pobreza, castidade e obediência. A cerimônia deu-se em 7 de
outubro de 1860, na Casa principal da Congregação na Rua de Picpus, em Paris
(endereço do qual os religiosos herdaram uma de suas designações populares:
"padres de Picpus"). Após ouvir as palavras dirigidas pelo superior,
Damião renunciou a qualquer propriedade pessoal, à constituição de família
carnal, e aos seus destinos, com as seguintes palavras: "eu, Damião, seguindo as constituições, estatutos e regras
aprovados e confirmados pela Santa Sé Apostólica, faço para sempre, entre
vossas mãos, meu reverendíssimo Pai, voto de pobreza, de castidade e de
obediência como irmão da Congregação dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria,
ao serviço dos quais quero viver e morrer. Em nome do Pai, e do Filho, e do
Espírito Santo. Amém". Teve então estendido sobre si um tecido
mortuário sustentado por quatro religiosos professos, enquanto outros quatro
portavam velas acesas caracterizando aquele momento como um enterro: era
cantado o hino fúnebre Miserere, feita a aspersão do "defunto" com
água benta, enquanto em voz baixa era recitado o Pai Nosso e algumas outras
preces, ao fim das quais aquela "morte" era selada com a oração: "Deus eterno e todo poderoso, que
ordenais que, mortos para o mundo, vivamos em Cristo, conduzi vossos servidores
pelo caminho da salvação eterna; que suas vidas sejam escondidas em Cristo para
que, recebendo-O de Vós, desejem o que Vos agrade e o cumpram com todas as suas
forças", o que se seguia do alegre cântico do Te Deum, solene hino de
ação de graças.
Mudança de
rumo: sacerdote missionário no longínquo oriente
Ao contrário do irmão mais velho Panfílio, Damião não
tinha inicialmente esperança de se tornar sacerdote: seus estudos secundários
se reduziam a poucos meses, e só lhe sobravam duas opções: irmão converso e
irmão de coro. Os irmãos conversos podiam partir em missões, sendo geralmente
destinados a construções de capelas ou residências para os missionários, e os
irmãos de coro atuavam como encarregados da capela e da sacristia do convento,
e por vezes ajudavam em algumas atividades nas escolas da congregação. Mas os
superiores perceberam ser Damião intelectualmente dotado, e assim o permitiram
preparar-se para o sacerdócio, tendo cursado um ano de filosofia em Paris,
quando também estudou latim e grego além de aprimorar o idioma francês; depois
foi enviado de volta a Louvain, na Bélgica, para estudar teologia, o que fez
por dois anos.
A dor pela doença que acometeu seu irmão Panfílio,
destinado inicialmente a ser missionário no Havaí, logo se transformou para
Damião em alegria, pois teve resposta afirmativa ao pedido de permissão para
substituí-lo na feliz viagem que não conheceria retorno: após cinco meses
singrando os mares, desembarcou o jovem religioso em Honolulu, capital do que
então era um reino. O grupo era formado por um sacerdote, três clérigos, dois
irmãos conversos, e dez irmãs. As irmãs ocupavam um compartimento ao lado do
que foi destinado aos religiosos do sexo masculino, mas nenhuma comunicação era
feita entre eles a não ser por intermédio do superior que os acompanhava, o Pe.
Chrétien, detalhe que Damião fez questão de inserir em carta remetida aos pais
durante a viagem.
Dormindo em beliches, os religiosos viajavam em um
verdadeiro convento flutuante: havia momentos destinados às orações, aos
estudos e às distrações, sob as ordens de um zeloso padre superior, e, quando o
vento e o mar se acalmavam, era celebrada a Santa Missa a bordo. Em nenhum
momento as perturbações orgânicas próprias às viagens marítimas foram motivo de
queixas nas missivas que Damião remetia aos familiares, mas - ao contrário -
suas palavras eram como essas: "em parte se deve a vossas fervorosas
orações, queridíssimos pais, que tenhamos feito uma feliz travessia, pois vos
asseguro que a Divina Providência nos protegeu visivelmente durante toda a
nossa viagem; várias vezes, sobretudo nos lugares perigosos, sentimos o socorro
de nosso divino Salvador, que prometeu permanecer sempre com seus apóstolos e
seus missionários até o fim dos tempos". E a viagem marítima encerrou-se
no dia da festividade de São José (19 de março de 1864), no porto de Honolulu:
recebidos pelo superior da missão, Pe. Modesto Favens, os viajantes foram
levados à catedral para a celebração de uma Missa, seguida de um Te Deum.
No Havaí, após breve passagem pelo subdiaconato e
diaconato, Damião foi ordenado presbítero em 21 de maio do mesmo ano, na
Catedral de Nossa Senhora da Paz. "Como
eu tremia ao subir pela primeira vez ao altar - escreveu ao superior geral
da Congregação - como estava emocionado
meu coração ao dizer pela primeira vez ao Verbo que descesse às minhas mãos;
que afetos então sobrenaturais e diferentes para mim ali se formavam ao
distribuir, em minha primeira missa, o Pão da Vida a 150 ou 200 pessoas, das
quais muitas provavelmente se haviam inclinado frequentemente ante seus antigos
ídolos e que agora, totalmente vestidas de branco, se aproximavam com tanta
modéstia e respeito à Santa Mesa".
Ministério
sacerdotal no Havaí
Iniciou-se então a vida de sacerdote missionário para
Damião, sob as ordens de seu superior religioso e do vigário apostólico (Pe.
Modesto Favens e Mons. Louis-Desiré Maigret, respectivamente, ambos
pertencentes à mesma família religiosa: Sagrados Corações). Poucos dias após
ser ordenado, Pe. Damião foi enviado à Ilha Grande do arquipélago, onde passou
a exercer o ministério. As distâncias que tinha de percorrer eram muito
grandes, o que o levou a enfrentar dificuldades para a confissão frequente
(chegou a apelar a um artigo da regra que proibia formalmente que um
missionário estivesse só, em carta ao superior geral). Incansavelmente, ano
após ano, construía capelas, além de distribuir os sacramentos, ensinar nas
escolas, cuidar de doentes, pregar ao povo, e assim anunciar o Evangelho.
Em 04 de maio de 1873, em meio a outros irmãos, o
vigário apostólico (Mons. Maigret, bispo) pediu voluntários para se revezarem
dando assistência aos leprosos na ilha de Molokai: alguns se apresentaram,
sendo o Pe. Damião escolhido para ser o primeiro de uma alternância que não
ocorreu, pois o encargo tornou-se definitivo. Alguns meses depois dirá, em
carta a um irmão: "tendo já passado
sob o pano mortuário no dia de meus votos, acreditei ser meu dever oferecer-me
a Sua Grandeza [o bispo], que não
teve a crueldade, como ele dizia, de ordenar tal sacrifício". O
próprio bispo (vigário apostólico), Mons. Maigret, acompanhou o novo pastor a
Molokai, para apresentá-lo às ovelhas que a ele eram confiadas.
Leprosário
insular
A lepra (hanseníase) surgira no Reino do Havaí em
1840, como consequência da imigração, sendo naquela época incurável, e
considerada muito contagiosa. O isolamento era a única solução encontrada pelas
autoridades para a terrível enfermidade que continuava a desafiar a medicina.
Os leprosos - várias centenas - eram confinados na ilha de Molokai, a quinta em
extensão territorial do arquipélago, mais precisamente em uma península
envolvida pelo oceano e isolada do restante do território por uma barreira
montanhosa íngreme. Os enfermos que ali moravam podiam ser acompanhados por
parentes, mas isso era uma exceção, pois em sua maior parte eram abandonados e
rejeitados. Havia medidas governamentais para apoio aos que ali estavam
confinados, como a construção de um pequeno hospital, alimentos e algumas
roupas, e a visita eventual de um médico, mas tudo era rudimentar e muito aquém
das necessidades. Os óbitos eram frequentes - um a dois por dia - e o próprio
Pe. Damião deu o exemplo, sepultando os cadáveres que por vezes não tinham o
privilégio de gozar dessa atitude de respeito aos mortos.
Os habitantes dividam-se em dois povoados: Kalawao e
Kalaupapa. As moradias eram em geral muito precárias, por vezes feitas com
pedras ou vegetais (até mesmo de cana-de-açúcar), com cobertura de folhas. A
promiscuidade entre os pobres leprosos imperava, sem distinção de idade ou
sexo. Não se podia falar propriamente em higiene, pois a água era obtida de
fontes longínquas, conduzida em toscos recipientes transportados nas mãos. Os
maus odores exalados das feridas e dos dejetos eram especialmente nauseantes,
sendo mesmo insuportáveis para um recém-chegado: o Pe. Damião chegou a
deslocar-se rapidamente para fora de certos ambientes e assim evitar
ocorrências mais desagradáveis que não poderia controlar, como se pode perceber
nesse registro: "mais de uma vez,
cumprindo junto a eles meus deveres sacerdotais, me vi forçado não somente a
tampar as narinas mas inclusive correr para fora a fim de respirar ar
puro". Escreveria ele, posteriormente, que o cachimbo que passou a
usar atenuava em seu organismo os efeitos de tais emanações, pois o odor do
tabaco, ao impregnar suas roupas, atuava como uma fragrância dissimulando as
impregnações infectas.
Ao superior geral da congregação, o Pe. Damião
escreveu em agosto de 1873: "eis-me
aqui, reverendíssimo padre, em meio a meus queridos leprosos. São muito
hediondos de ver, porém têm uma alma resgatada pelo preço do sangue adorável de
nosso divino Salvador. Ele também, em Seu divino amor, consolou os leprosos. Se
eu não os posso curar como Ele, ao menos os posso consolar, e pelo santo
ministério que Sua bondade me confiou espero que muitos entre eles, purificados
da lepra da alma, apresentem-se ao Seu tribunal em estado de entrar na
sociedade dos bem-aventurados". Diz também que "acabo de fazer um pedido a Sua Grandeza [o bispo] para ampliar a
capela. O odor infecto que emana de seus corpos e de suas feridas exigiria uma
igreja grande para tornar o culto menos penoso. Algumas vezes me era difícil
resistir durante a Santa Missa e no sermão. É como o ‘já cheira mal' de São
Lázaro. Enfim: Nosso Senhor suportou isso, e eu também o posso. Oxalá pudesse
conseguir, por esse sacrifício, a ressurreição espiritual dos que, entre eles,
ainda não saíram da tumba do pecado para viver a vida de graça que o bom Deus a
eles oferece todos os dias".
Mãos à obra
Várias capelas foram construídas por iniciativa do Pe.
Damião, tendo ele constituído um coro e uma banda de música, que passaram a
atuar convenientemente nas missas, nas procissões e nos funerais, e até mesmo
nas recepções aos visitantes mais ilustres. Procurava demonstrar benquerença
para com todos, participando de suas refeições, compartilhando seu cachimbo com
outros homens, e até brincando com as crianças. Além disso, todos eram
bem-vindos em sua casa. Mesmo antes de contrair a doença ali imperante, o Pe.
Damião se inseriu entre eles, pois ao dirigir a palavra aos que ouviam suas
homilias dizia: "nós, leprosos",
mesmo sem saber que um dia tal expressão se tornaria real.
Em poucos anos o Pe. Damião fez florescer uma
autêntica comunidade, bem oposta ao que encontrou quando chegou àquele
"cemitério vivo": os moradores constituíam, quando ele ali aportou,
uma verdadeira selva humana. Eis suas palavras extraídas de um relatório
escrito em 1886: "à chegada dos novos
leprosos, os antigos se apressavam a incutir neles a falsa máxima de que ‘neste
lugar já não há lei'. Durante muito tempo me vi obrigado a combatê-la, vendo
que se aplicava o mesmo às leis humanas e às divinas. Em consequência dessa
teoria ímpia, a maioria dos solteiros, e dos casados que estavam separados de
seus cônjuges pela lepra, viviam amontoados sem distinção de sexo. Muitas
mulheres eram obrigadas a prostituir-se para conseguir amigos que as ajudassem
durante sua doença. As crianças, quando fortes, eram empregadas como serventes.
E quando a lepra havia progredido, tais mulheres e crianças eram expulsas da
casa para buscar um abrigo em qualquer lugar. Não era raro encontrá-las atrás
de uma cerca esperando que a chegada da morte viesse pôr fim a seus
sofrimentos, ou que uma mão compassiva ou contratada os transportasse ao
hospital". Acrescenta o Pe. Damião, no mesmo documento: "como muitos leprosos morriam, meu
dever sacerdotal me oferecia amiúde a ocasião de visitá-los em suas cabanas e,
ainda que minhas exortações se dirigissem principalmente aos moribundos,
balançavam frequentemente as orelhas dos pecadores públicos, os quais pouco a
pouco tomaram conhecimento das consequências de suas más condutas e começavam a
se arrepender. A esperança do perdão de um Salvador misericordioso começava a
reforma de sua má vida (...). Um meio
dos mais eficazes para destruir a imoralidade tem sido a permissão para
casar-se, dada aos leprosos não impedidos por um matrimonio anterior (...).
Uma grande bondade para com todos, um
terno amor para com os necessitados, uma doce compaixão para com os doentes e
moribundos, juntamente com uma sólida pregação a meus ouvintes, esse tem sido o
procedimento constante do qual me tenho servido para introduzir os bons
costumes entre os leprosos".
Sofrimentos
Um sofrimento que particularmente atormentou o Pe.
Damião foi a dificuldade para fazer a confissão frequente. Nos cinco primeiros
anos o isolamento da colônia de leprosos era total, por ordem do governo. Por
ocasião de uma visita do superior provincial - o Pe. Modesto Favens - este foi
impedido de desembarcar, limitando-se a se inclinar sobre a amurada do navio
para ouvir as acusações do rigoroso penitente que se aproximara em uma canoa,
feitas em voz alta por estar proibido de subir a bordo a fim de evitar
contágio.
Os anos se passaram em meio a frutífero apostolado,
mas o sacrifício foi aceito: a hanseníase tomou pouco a pouco o robusto
organismo do Pe. Damião. Manchas foram surgindo na pele, tumorações foram se
desenvolvendo em várias partes do corpo, a sensibilidade começou a desaparecer,
mas naquela época o diagnóstico médico não era tão fácil e rápido como nos dias
atuais. A certeza surgiu em janeiro de 1885 quando, após uma fatigante
caminhada para o exercício do ministério, pôs o pé em uma vasilha contendo água
escaldante pensando ser morna, e não sentiu incômodo algum: perdera a
sensibilidade térmica, o que indicava estar leproso. Aos familiares, diz que "trato de levar minha cruz com alegria,
como Nosso Senhor Jesus Cristo". Ao Pe. Léonor Fuesnel, então seu
superior provincial, o Pe. Damião faz um pedido: "pois bem, meu reverendo padre, já não tenho dúvidas, sou leproso;
que o bom Deus seja bendito! Não tenha muita pena de mim, pois estou
perfeitamente resignado com minha sorte. Não peço mais que uma graça: suplicai
a nosso Muito Reverendo Padre que envie algum [sacerdote] que possa uma vez ao mês descer até nossa
tumba para confessar-me e, no restante do tempo, ocupar-se das capelas do outro
lado da ilha, onde não há doentes".
Em uma carta dirigida a um escritor que visitara
aquela colônia de leprosos, o Pe. Damião escreveu em outubro de 1885: "Desde o mês de março passado meu
correligionário, o Pe. Alberto, deixou Molokai e o arquipélago para regressar a
Tahiti. Desde então sou o único sacerdote em Molokai e tenho a fama de estar
atacado eu próprio pela terrível doença. Os micróbios da lepra se instalaram
finalmente na minha perna esquerda e na orelha. Minhas pálpebras começam a
cair. Me é impossível viajar a Honolulu, pois a lepra se faz visível. Logo
minha figura ficará deteriorada, suponho. Estando certo de que a doença é real,
permaneço tranquilo e resignado, e até sou mais feliz entre as pessoas aqui. O
bom Deus sabe o que é melhor para minha santificação, e nesta convicção digo
todos os dias um bom 'fiat voluntuas tua' [seja feita a tua vontade]. Tenha a bondade de rezar por este seu amigo
provado e recomendar-me, assim como aos meus desventurados leprosos, a todos os
servidores de Deus".
Tendo a notícia de sua doença se espalhado por todo o
arquipélago, o Pe. Damião teve de enfrentar uma prova que lhe foi um sofrimento
atroz: seus superiores se opuseram categoricamente a que viajasse à capital,
Honolulu, por qualquer motivo que fosse, inclusive para a confissão sacramental.
Sua chegada seria suficiente para espantar os fiéis das capelas da missão,
pensavam. O aflito sacerdote missionário deixou extravasar um pouco de sua
tristeza em uma carta ao Pe. Léonor Fouesnel (superior provincial que tratava o
Pe. Damião com incompreensão e hostilidade): "a negativa absoluta expressa em um tom de autoridade policial,
mais que em tom de superior religioso, e feita em nome do bispo e do ministro
como se a missão estivesse posta em quarentena, me causou - asseguro-o
sinceramente - mais dor do que tudo o que tive de sofrer desde a infância.
Respondi com um ato de submissão absoluta em virtude de meu voto de obediência.
Continuo estando em paz (...). Sempre
resignado à santa vontade do bom Deus em nossos sofrimentos cada vez mais lancinantes,
sejamos, Monsenhor, mortui in Christo... vitae nostrae sint absconditae in Deo
- mortos em Cristo e que nossas vidas estejam escondidas em Deus".
A
Eucaristia, seu alimento
O Pe. Damião era um entusiasta da sagrada Eucaristia.
Afinal, a Adoração Eucarística fazia parte do espírito da congregação em que
ingressara, e nas viagens pelas regiões entregues a seus cuidados ele lamentava
não ter, por vezes, o Santíssimo Sacramento para junto a Ele apresentar suas
preces, suas confidências, seus anseios. Em carta ao Pe. Alberto Montiton, seu
grande amigo que se transferira de Molokai para Thaiti, se lê: "Vossa
carta de 14 de março veio cicatrizar um pouco a profunda ferida no coração que
vossa partida me havia causado. As lágrimas que eu então vertia eram perfeita
expressão de minha dor pela perda e meu pressentimento da penosa e excepcional
situação na qual ia passar o resto de meus dias. De fato, meu querido padre,
desde que perdi em vós um bom companheiro neste triste leprosário, não tenho
tido mais que a visita momentânea de um irmão cada dois ou três meses. Ademais,
a terrível doença, cujo começo conheceis, faz progressos espantosos e ameaça
impedir-me, talvez logo, de celebrar a Santa Missa e, não tendo outro
sacerdote, eu me veria privado da santa comunhão e do santo sacramento. Tal
privação é a que mais me custará e que tornará insuportável minha situação. Não
é a doença e os sofrimentos o que me desencoraja; longe disso. Até aqui me
sinto feliz e contente e, se me fosse dada a oportunidade de sair daqui em boa
saúde, diria sem titubear: fico com meus leprosos" (maio de 1886).
Distinguido
pelas autoridades
Apesar dos vários meses em que permanecera em uma
verdadeira prisão - pois esteve preso pela sagrada obediência, cárcere sem
grades ou cadeias, porém mais encarcerante do que os que as têm - pôde o Pe.
Damião experimentar algum consolo: foi-lhe permitida a viagem a Honolulu sem
cometer desobediência ou incorrer em censuras. Pelo contrário: recebeu a visita
do próprio Rei do Havaí, Kalakaua I, de seu primeiro ministro Walter M. Gibson,
e do bispo Mons. Bernard Hermann Koeckemann.
Em setembro de 1881 a princesa havaiana Lydia
Liliuokalani havia visitado os leprosos em Molokai, e ficou tão comovida com a
miserável situação em que se encontravam imersos associada à extrema dedicação
do sacerdote missionário que não conseguiu pronunciar o discurso que havia
preparado, cujo texto tinha às mãos. Retornando a Honolulu solicitou que o
esforçado padre fosse investido como Comandante Cavaleiro da Real Ordem de
Kalakaua, honraria que a ele foi então concedida pelo soberano reinante em
reconhecimento aos seus "esforços no alívio dos sofrimentos e na mitigação
das dores dos infelizes", sendo humildemente aceita e considerada como uma
atenção dada a seus leprosos. A insígnia era uma medalha com a Cruz da Real
Ordem de Kalakaua. Anos depois, em meio aos sofrimentos finais de sua
enfermidade, o Pe. Damião salientou: "o Senhor me condecorou com sua cruz
particular: a lepra".
Trabalhando
até ser abatido pela doença
Apesar da progressão da doença, o Pe. Damião a ela não
se entregou: ao contrário, continuou a ministrar os sacramentos, a visitar os
enfermos, a consolar os que estavam tristes, a pregar o Evangelho. Em 19 de
março de 1889 completou 25 anos de ordenação presbiteral, porém no dia 28 do
mesmo mês prostrou-se em seu leito para não mais o deixar, pois seu estado de
saúde se agravou. Fez uma confissão geral ao Pe. Wendelin Moellers, que o assistiu,
o qual em seguida confessou-se ao santo homem que ali jazia, e em seguida ambos
renovaram os votos religiosos. Esse sacerdote foi encarregado pelo Pe. Damião
de dizer ao superior geral que seu "mais doce consolo nesses momentos era
morrer membro da Congregação dos Sagrados Corações".
Em 15 de abril de 1889, após quase 16 anos entre os
leprosos de Molokai e tendo-se tornado um deles, o Pe. Damião partiu para a
eternidade. Contava apenas 49 anos, mas a aparência lhe atribuía idade muito
superior. Foi sepultado no cemitério da comunidade em que vivia, mas em 1936
seus restos mortais retornaram à Bélgica, sendo postos em um jazigo na igreja
dos Sagrados Corações, em Louvain. Por ocasião da beatificação (feita por João
Paulo II em 1995) os ossos de sua mão direita - que tanto batizou, ungiu,
consagrou, abençoou - retornaram ao Havaí.
São Damião de Veuster e Santa Mariana Cope. |
Honrado, distinguido e venerado não só pelos católicos
A veneração e o respeito ao Pe. Damião de Molokai não
se restringem à Igreja Católica: diversas confissões não católicas viram nele
altíssimas qualidades, e ainda em vida ele foi distinguido com a admiração e o
apoio (inclusive financeiro) advindos de agremiações não alinhadas com as
convicções pelas quais o sacerdote missionário viveu e morreu. Uma detalhada
carta aberta foi dirigida pelo escritor Robert Louis Stevenson a um ministro da
religião por ele seguida, em firme e fundamentada defesa da memória do recém-falecido
Pe. Damião, vítima de críticas destrutivas que visavam a Santa Igreja através
de seu dedicado servo.
Disse Mahatma Ghandi: "Se a assistência aos
leprosos é tão cara ao coração dos missionários católicos, isso se deve ao fato
de que nenhuma obra exige, como ela, um espírito de sacrifício. Ela exige o
mais elevado ideal, a mais perfeita abnegação. O mundo político e jornalístico
não tem heróis os quais possa glorificar e que sejam comparáveis ao Pe. Damião
de Molokai. A Igreja tem entre os seus milhares de pessoas que, como ele,
sacrificaram sua vida em serviço dos leprosos. Valeria a pena pesquisar em qual
fonte tal heroísmo se alimenta".
O sacerdote missionário em 11 de outubro de 2009
passou a ser chamado São Damião de Molokai, canonizado pelo Papa Bento XVI em
presença do rei e da rainha da Bélgica em meio à imensa alegria dos irmãos e
irmãs da Congregação dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria e da Adoração
Perpétua ao Santíssimo Sacramento do Altar espalhados pelo mundo.
PRINCIPAIS FONTES:
Le Père Damien de Molokai, apôtre des lépreux (Édouard
Brion, versão chilena em espanhol intitulada El Camino de Damián traduzida pelo
Pe. Fabián Pérez del Valle SS.CC., Santiago do Chile, maio de 2000)
La canonisation du Père Damien de Veuster (Bernard
Couronne, André Lerenard e Christian Malrieu, Montgeron, França)
Site da Congregação dos Sagrados Corações
(www.ssccpicpus.com)
Um comentário:
Bendito seja Deus, pela vida, obra, e sacrifício deste sacerdote, que a igreja reconhece como santo! Deus é Fiel, e há de despertar outros tantos para zelar pelos pobres!
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