É “idolatria” honrar as relíquias dos mártires? Por que os
católicos veneram os restos mortais dos santos? Confira a resposta contundente
de São Jerônimo a um herege de sua época e descubra qual a verdadeira doutrina
católica sobre as santas relíquias. Na resposta de São Jerônimo vemos que, às vezes, é necessário que usemos de sabedoria, mas, também de veemência, quando defendemos a doutrina da fé.
Estamos
no século V. Ainda não há eletricidade, ainda não se sabe da existência da
América, ainda não se conhecem as universidades. Entretanto, o ser humano já
possui um conhecimento muito maior e mais extraordinário que qualquer outro:
"Verbum caro factum est – O Verbo se fez carne" (Jo 1, 14). Já há
Igreja Católica, já existem Papa e bispos, sem falar de uma multidão de fiéis
que, atraída pela verdade do Evangelho, segue a doutrina de Cristo e obedece
aos legítimos pastores da Igreja [1].
Neste
tempo, vale lembrar, ainda não há protestantismo. Ainda não há Lutero,
não há Calvino, e nem sequer os iconoclastas começaram a quebrar imagens no
Império Bizantino. Mesmo assim, uma questão perturba a mente de algumas
pessoas: refere-se às "relíquias" dos santos. O termo relíquia vem do
latim e significa "restos". O que acontece é que os restos mortais
dos mártires – homens e mulheres que confessaram publicamente a sua fé em
Jesus, até o ponto de morrerem por isso – são recolhidos pelo povo cristão e
venerados publicamente na Igreja. Ossos e outros objetos ligados a eles são
depositados em lugares sagrados, reverenciados e honrados como se as almas
santas que animaram aqueles instrumentos ainda estivessem ali, vivas entre
eles.
A
pergunta que alguns fazem – e que os reformadores protestantes repetirão um
milênio depois – é se a veneração daquelas relíquias não estaria desviando o
foco de Cristo ou, para ser mais direto, não acabava constituindo uma espécie
de "idolatria" ou "superstição" pagã. Afinal, tamanho apego
a coisas materiais não seria uma ofensa à doutrina essencialmente espiritual
ensinada por Jesus?
Cabe
esclarecer que não são muitas as pessoas a fazer esse tipo de questionamento.
De fato, a grande massa de cristãos não tem dúvidas a respeito da importância
de custodiar e honrar os restos mortais dos santos. Uma epístola circular do
martírio de São Policarpo de Esmirna, por exemplo, atesta que os ossos dos
mártires são tidos pelos cristãos como "mais preciosos que as pedras de
valor e mais estimados que o ouro puro" [2]. Isso ainda no século II,
muito antes de Constantino conceder a liberdade de culto aos cristãos! Desde
aqueles anos, a prática de venerar as relíquias dos mártires não pára de crescer,
com a mesma rapidez que o Evangelho se vai impregnando nas mentes e nos
corações dos homens.
São
poucos os que contestam o culto das relíquias, mas o posto dos que coçam a
cabeça não permite que sejam ignorados. – Há um presbítero falando mal das
santas relíquias, e isso pode causar dano às almas! – Foi o que pensou São
Jerônimo, ao levantar-se contra o herege Vigilâncio de Aquitânia, um clérigo
que, entre muitos erros, defendia o fim do culto às relíquias e das vigílias
nas basílicas dos mártires.
A
resposta de Jerônimo a Vigilâncio – condensada em uma de suas epístolas [3] – é
dura e incisiva, e pode até mesmo chocar os ouvidos mais frágeis. Poucos
textos, porém, são tão claros e contundentes na exposição da doutrina católica
a respeito da veneração aos santos.
Carta 109 (53) "Acceptis
primum", a Ripário, presbítero de Aquitânia,
c. ano 404
Informado de que Vigilâncio condenava tanto a veneração às
relíquias dos mártires quanto as vigílias feitas diante de seus sepulcros, São
Jerônimo como que trava combate nesta carta e se declara disposto a refutar
estes erros, caso Ripário, seu destinatário, lhe envie os escritos de
Vigilâncio.
1.
Tendo recebido tuas cartas, ó Ripário, julgo que não as responder seria
arrogância; e respondê-las, ao contrário, seria temeridade. Com efeito, as
coisas que me perguntas não podem nem ouvir-se nem contar-se sem sacrilégio.
Dizes, pois, que este tal Vigilâncio, a quem eu, com mais propriedade, chamaria
“Dormitâncio” [4], voltou a abrir a
boca suja para exalar contra as relíquias dos santos mártires o seu terrível
mau cheiro: julgando-nos adoradores de ossos, ele nos chama cinerários [5] e
idólatras. Oh! homem infeliz e digno de pena, que, ao dizer tais coisas, não
percebe ser mais um samaritano e judeu, os quais, preferindo a letra que mata
ao Espírito, que dá vida (cf. 2Cor 3, 6), consideram impuros não só os
cadáveres, mas inclusive a mobília de suas casas.
Nós,
ao contrário, recusamo-nos a adorar, não digo nem as relíquias dos mártires,
mas nem sequer o sol, a lua ou os anjos, sejam arcanjos, querubins ou serafins,
nem nenhum nome que possa haver quer neste mundo, quer no futuro (cf. Ef 1,
21), pois não podemos servir mais às criaturas do que ao Criador, que é bendito
pelos séculos (cf. Rm 1, 25). Veneramos, todavia, as relíquias dos
mártires, a fim de adorarmos Aquele de quem eles são mártires;
honramos, sim, os servos, para que a honra prestada a eles recaia sobre o seu
Senhor, que diz: "Quem vos recebe, a
Mim recebe" (Mt 10, 40). São, portanto, impuras as relíquias de Pedro
e Paulo? Quer dizer então que o corpo de Moisés, sepultado, como lemos, pelo
próprio Senhor (cf. Dt 34, 6), não passa de imundície? Sendo assim, todas as
vezes que entramos nas basílicas dos apóstolos e profetas, como também nas de
todos os mártires, são ídolos o que ali veneramos? As velas acesas diante de
seus túmulos são, enfim, sinais de idolatria? Farei uma só pergunta mais, que
há de ou curar ou ensandecer de vez a cabeça insana deste autor, a fim de que
as almas simples não se percam por causa de tamanhos sacrilégios. Acaso era
imundo também o corpo do Senhor enquanto esteve no sepulcro? Os anjos,
portanto, com vestes resplandecentes, vigiavam aquele cadáver
"sórdido" para que, séculos mais tardes, o delirante Dormitâncio vomitasse esta porquice e,
assim como o perseguidor Juliano, destruísse nossas igrejas, ou mesmo as
convertesse em templos pagãos?
Relíquias dos Santos Mártires de Arjona |
Relíquias do mártir São Valentim |
2.
Surpreende-me que o santo bispo em cuja paróquia, pelo que dizem, Vigilâncio é
presbítero, concorde com esta loucura e nem com disciplina apostólica nem com
disciplina férrea corrija esse vaso inútil "para
a mortificação do seu corpo, a fim de que a sua alma seja salva" (1Cor
5, 5). Ele deveria lembrar-se do que dizem os Salmos: "Se vês um ladrão, te ajuntas a ele, e com adúlteros te
associas" (Sl 49, 18); e noutra passagem: "Todos os dias extirparei da terra os ímpios, banindo da cidade do
Senhor os que praticam o mal" (Sl 100, 8). E ainda: "Pois não hei de odiar, Senhor, os que
vos odeiam? Os que se levantam contra vós, não hei de abominá-los? Eu os odeio
com ódio mortal" (Sl 138, 21-22). Ora, se não se devem honrar as
relíquias dos mártires, como então lemos: "Preciosa
é à vista do Senhor a morte dos seus santos" (Sl 115, 6 [15])? Se,
pois, os ossos dos defuntos tornam impuros os que os tocam, como o cadáver
de Eliseu, que, segundo Vigilâncio, jazia imundo na
sepultura, pôde trazer à vida outro corpo morto (cf. 2Rs 13, 21)?
Logo, foram impuros todos os arraiais do exército de Israel e o próprio povo de
Deus, já que, levando consigo pelo deserto os corpos de José e dos patriarcas,
trouxeram à Terra Santa as cinzas dos mortos? Também José, deste modo, foi
profanado, ele que, com grande pompa e cortejo, partira com a ossada de Jacó em
direção a Hebron, unicamente para reunir os restos imundos de seus parentes,
juntando um morto aos outros? Oh! deveriam os médicos cortar esta língua e pôr
sob tratamento esta insanidade. Se ele [sc. Vigilâncio] não sabe falar, que
aprenda ao menos a calar-se. Eu mesmo já tive ocasião de ver outrora este
monstro e, servindo-me dos textos da Escritura como das amarras de Hipócrates,
tentei conter o seu furor; mas ele, tomando o seu partido, preferiu fugir e
refugiar-se entre as vagas do Adriático e os Alpes do rei Cócio [i. e. Alpes
Cócios], donde pôde desfazer-se em injúrias contra nós. De fato, tudo quanto um
tolo diz não é senão vociferação e barulho.
3.
Tu talvez me repreendas em teu íntimo por haver-me dirigido nestes termos a
quem não está presente para defender-se. Devo, contudo, confessar-te a minha
dor. Não posso ouvir pacientemente tal sacrilégio. Eu li, pois, sobre a lança
de Finéias (cf. Nm 25, 7); sobre a austeridade de Elias (cf. 1Rs 18, 40); sobre
o zelo de Simão Cananeu; sobre a severidade de Pedro, cujas palavras prostraram
a Ananias e Safira (cf. At 5, 5); sobre, enfim, a constância de Paulo, punindo
com cegueira perpétua a Elimás, o Mago, que se opunha às vias do Senhor (cf. At
13, 8-11). Não há crueldade no ser temente a Deus. De fato, na própria Lei se
diz: "Se o teu irmão, ou um teu
amigo, ou a tua esposa te quiserem desviar da verdade, esteja a tua mão sobre
eles, e tu lhes derramará o sangue, e tirarás o mal de Israel" (cf. Dt
13, 6-9). Pois bem, ó Vigilâncio, são imundas as relíquias dos mártires? Por
que então trataram os Apóstolos de enterrar com grande dignidade o corpo
"imundo" de Estevão? Por que fizeram a seu respeito um grande pranto
(cf. At 8, 2), a fim de que a sua lamentação se tornasse a nossa alegria? Ora,
não fosse isso o bastante, tu [sc. Ripário] também me dizes que ele despreza as
vigílias. E vai nisto contra o próprio nome, como se Vigilâncio quisesse antes
dormir do que ouvir o Senhor, que diz:
"Então não pudestes vigiar uma hora comigo... Vigiai e orai para que não
entreis em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca" (Mt
26, 40-41). E noutra passagem canta o profeta: "Em meio à noite levanto-me para vos louvar pelos vossos decretos
cheios de justiça" (Sl 118, 62). Lemos também no Evangelho que o
Senhor passava as noites orando a Deus (cf. Lc 6, 12) e que os Apóstolos,
quando eram mantidos sob custódia, costumavam vigiar e entoar salmos a noite
inteira, para que a terra estremecesse, o carcereiro se convertesse, o
magistrado e a cidade se enchessem de horror (cf. At 16, 25-38). Paulo diz: "Sede perseverantes, sede vigilantes na
oração" (Col 4, 2) e, noutro lugar, em "vigílias repetidas" (2Cor 11, 27). Que Vigilâncio durma,
então, se assim lhe aprouver, e seja sufocado com os egípcios pelo exterminador
do Egito (cf. Ex 11, 4-6). Nós, porém, digamos com Davi: "Não, não há de dormir, não há de adormecer o guarda de
Israel" (Sl 120, 4), para que venha a nós o Santo Velador (cf. Dn 4, 10) [6]. Mas se porventura, devido aos nossos
pecados, Ele adormecer, enquanto nossa barca se enche d'água, despertêmo-lO:
"Levanta-Te, Senhor, como dormes?" e clamemos: "Senhor,
salva-nos, nós perecemos" (Mt 8, 25).
4.
Quisera eu poder escrever-te mais coisas, ó Ripário! Os limites de uma
simples carta, porém, impõe-nos a modéstia do silêncio. De resto, tivesses tu
nos enviado os livros de suas cantilenas, saberíamos em detalhe a que objeções
poderíamos responder. Por ora, apenas golpeamos o ar (cf. 1Cor 9, 26) e demos a
conhecer não tanto a infidelidade dele, que é manifesta a todos, quanto a nossa
própria fé. Mas se desejares que discorramos com mais vagar a este respeito,
envia-nos as suas lamúrias e tolices, para que afinal dê ouvidos à pregação de
João Batista: "O machado já está posto à raiz das árvores: toda árvore que
não produzir bons frutos será cortada e lançada ao fogo" (Mt 3, 10).
Referências
Cf. Catecismo de S. Pio X, n. 3: "Verdadeiro
cristão é aquele que é batizado, crê e professa a doutrina cristã e obedece aos
legítimos Pastores da Igreja."
De Martyrio Sancti Polycarpi, 18 (PG 5, 1043).
O original dessa epístola de São Jerônimo a Ripário
está no volume 22 da Patrologia Latina, 906-909.
Um sarcástico jogo de palavras: Vigilâncio
(Vigilantius), isto é, "aquele que está desperto"; Dormitâncio
(Dormitantius), ou "o que dorme".
Assim eram pejorativamente chamados os cristãos dos
primeiros séculos, por venerarem as cinzas e as relíquias de santos e mártires.
No original, lê-se: "[...] ut ad nos veniat et
air, qui interpretatur vigil." Pode tratar-se de uma referência ao
Espírito Santo. Os trechos precedente e seguinte, no entanto, dão a entender
que é realmente de Nosso Senhor Jesus Cristo que São Jerônimo fala.
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