Decreto
do Papa soma “aceitação de uma morte
certa e a curto prazo” ao
martírio e ao
reconhecimento de “virtudes heroicas”.
A
“oferta da vida” é a quarta via para os processos
de
canonização, que a partir de hoje se junta ao
martírio, ao
exercício das “virtudes heroicas” e à
canonização
“equipolente” (por decisão explícita
do Papa).
O
Papa Francisco publicou em 11 de julho de 2017 o decreto que
apresenta a “oferta da vida” como novo modelo jurídico para a
abertura de processos de beatificação e canonização, distinto do
“martírio” e do reconhecimento das “virtudes heroicas”. De
acordo com a carta apostólica em forma de “motu próprio”
(documento assinado pelo próprio Papa), a “oferta da vida” tem
de acontecer “de forma livre e voluntária” e corresponder a uma
“heroica aceitação por caridade de uma morte certa e a curto
prazo”.
Os
critérios apontados pelo documento divulgado pela Sala de Imprensa
da Santa Sé indicam também a necessária ligação entre a “oferta
da vida” e a “morte prematura” e o exercício das “virtudes
cristãs antes de dar a vida”.
A
“existência de fama de santidade” depois da morte e a
“necessidade de um milagre para a beatificação, ocorrido depois
da morte do Servo de Deus e por sua intercessão” são outras duas
condições para a santidade de quem dá a vida.
A
“oferta da vida” é a quarta via para os processos de
canonização, que a partir de hoje se junta ao martírio, ao
exercício das “virtudes heroicas” e à canonização
“equipolente” (por decisão explícita do Papa).
Os
processos de canonização que se incluem na categoria da “oferta
da vida” seguem as normas dos casos das virtudes heroicas,
começando primeiro na fase diocesana, com a recolha de documentação
relativa ao candidato, a que se segue a fase romana, onde os
processos são avaliados na Congregação para as Causas dos Santos,
de acordo com a legislação da Santa Sé e as alterações
introduzidas pelo Papa Francisco e publicadas no dia 3 de março de
2016.
O
documento pontifício, que entrou em vigor no mesmo dia da
promulgação, define como “dignos de especial consideração e
honra aqueles cristãos que, seguindo mais de perto as pegadas e os
ensinamentos do Senhor Jesus, ofereceram de forma voluntária e
livremente a vida pelos outros” perseverando “até a morte neste
propósito”.
Aliás,
prossegue o motu proprio, “a oferta heroica da vida, sugerida e
apoiada pela caridade, exprime uma verdadeira, plena e exemplar
imitação de Cristo e, portanto, merece aquela admiração que a
comunidade dos fiéis costuma reservar a quantos de maneira
voluntária aceitaram o martírio de sangue e exerceram de modo
heroico as virtudes cristãs”.
Com
o “parecer favorável” manifestado pela Congregação para as
Causas dos Santos, na sessão plenária de 27 de setembro de 2016, o
Papa estabelece os critérios a serem seguidos na ação processual.
O
secretário da Congregação para as Causas dos Santos, D. Marcello
Bartolucci, explica ao jornal do Vaticano que o Papa abriu uma
“quarta via”, porque as precedentes não pareciam “suficientes
para interpretar todos os possíveis casos de santidade canonizável”.
A
canonização representa, na Igreja Católica, a confirmação, por
parte da Igreja, que um fiel católico é digno de culto público
universal e de ser dado aos fiéis como intercessor e modelo de
santidade.
O
processo tem uma primeira etapa na diocese em que faleceu o fiel
católico; a segunda etapa tem lugar em Roma, onde se examina toda a
documentação enviada pelo bispo diocesano.
Após
exame da documentação efetuada pelos teólogos e especialistas,
compete ao Papa declarar a heroicidade das virtudes/oferta da
vida/martírio, a autenticidade dos milagres, a beatificação e a
canonização.
São
Maximiliano Maria Kolbe (1894-1941)
O
caso de Kolbe é praticamente arquetípico para o caminho da oferta
da vida. O padre polonês, franciscano conventual, morreu como
prisioneiro do campo de concentração nazista de Auschwitz depois de
se oferecer voluntariamente para ir para a câmara de inanição –
onde os condenados eram deixados para morrer de fome – no lugar de
outro preso.
Devido
à dificuldade em catalogar o seu caso como um martírio clássico,
seu processo de beatificação teve início pela via da heroicidade
das virtudes. Ele foi beatificado em 1971 pelo Beato Paulo VI. Depois
da eleição de seu compatriota São João Paulo II, seu processo foi
alterado para a via do martírio, culminando com sua canonização em
1982. Ambos os papas o chamaram “mártir da caridade”.
Santa
Gianna Beretta Molla (1922-1962)
A
médica Gianna Beretta Molla tinha 38 anos quando engravidou pela
quarta vez. Ela e seu marido Pietro estavam casados há seis anos e
já tinham um menino e duas meninas. Nessa última gestação, porém,
descobriu um fibroma no útero e foi colocada diante da opção de
abortar o bebê, de remover totalmente o útero – o que também
ocasionaria a morte da criança – ou de se submeter a uma cirurgia
arriscada para retirar o tumor.
Ela
deixou claro aos médicos que a vida de seu bebê era mais importante
do que a dela e optou pela cirurgia de retirada do fibroma. A
cirurgia teve sucesso, mas, mesmo assim, o nascimento da filha, sete
meses depois, não foi fácil. De novo, Gianna suplicou aos médicos:
“Se tiverem que decidir entre mim e o bebê, nenhuma hesitação:
exijo que escolham a criança”. Gianna Emanuela nasceu saudável,
mas uma semana depois a mãe morreu, em meio a dores excruciantes. O
Beato Paulo VI chamou o seu gesto de “meditada imolação”.
Beato
Oscar Romero (1917-1980)
O
arcebispo de San Salvador foi assassinado aos 62 anos enquanto
celebrava uma missa, em uma segunda-feira na capela de um hospital.
Duas semanas antes, já havia sido descoberta uma bomba plantada para
matá-lo na Basílica do Sagrado Coração de Jesus, na capital
salvadorenha. Quem planejou a sua morte foi o militar e líder
político Roberto d’Aubuisson, chefe dos “esquadrões da morte”
de cunho paramilitar que atuavam em favor do governo.
Longe
da caricatura ideologizada que se quis colar à sua imagem, Romero
era um bispo de traços conservadores que, em um espaço de poucos
anos, tomou consciência pouco a pouco que denunciar as injustiças
perpetradas pelo Estado contra o povo era uma exigência de sua fé e
não uma mera opção política – e de tal maneira estava
convencido disso que, mesmo sabendo que estava marcado para morrer,
não se deteve.
Beata
Lindalva Justo de Oliveira (1953-1993)
A
leiga consagrada potiguar, membro da Companhia das Filhas da
Caridade, trabalhava em um asilo de Salvador havia dois anos quando a
casa, a pedido de um político, acolheu um homem de 46 anos. Ele
começou a assediar a irmã Lindalva e lhe fazia propostas
inconvenientes e ameaças.
As
colegas sugeriram que Lindalva se afastasse do asilo e pedisse para
ser transferida a outra obra da companhia. A consagrada, porém,
repleta de caridade pelos 40 idosos de que cuidava, respondia:
“Prefiro que meu sangue seja derramado a afastar-me daqui”. Até
que, na manhã da Sexta-Feira Santa de 1993, o homem, que tinha
comprado uma peixeira na segunda-feira anterior, esfaqueou Lindalva
até a morte.
Beato
Stanley Francis Rother (1935-1981)
O
norte-americano Stanley Rother era padre havia cinco anos quando
pediu ao seu bispo para ser missionário na Guatemala. Com a
aprovação do bispo, ele se dirigiu em 1968 à cidade de Santiago
Atitlán. Aprendeu espanhol e tzutuhil e chegou a traduzir o Novo
Testamento e o rito da missa para essa língua, além de dirigir uma
rádio educativa e uma pequena enfermaria. Mas, em 1980, começou uma
onda de violência contra a sua comunidade. A estação de rádio foi
destruída, seu diretor foi assassinado e catequistas foram raptados
e encontrados mortos com sinais de tortura.
Rother
ficou sabendo que o seu nome estava assinalado para morrer e alguns
paroquianos recomendaram que ele voltasse aos Estados Unidos. Ele
chegou a visitar sua cidade, Oklahoma, em janeiro de 1981, mas pediu
ao seu bispo para retornar à Guatemala. Seu irmão o questionou:
“Por que você quer voltar? Eles estão te esperando e vão te
matar”. Rother respondeu: “Bem, um pastor não pode fugir do seu
rebanho”. Ele voltou em abril, a tempo de celebrar a Páscoa, e foi
assassinado em julho.
Além
desses santos e beatos, vale citar dois casos de pessoas que ainda
não foram beatificadas, mas cujo processo está aberto e claramente
se encaixa na via da oferta da vida. Um deles é Salvo d’Acquisto (1920-1943), um jovem policial italiano que, para livrar da execução
22 pessoas acusadas de uma explosão que matou dois soldados
nazistas, acusou a si mesmo de ter detonado os explosivos – o que
não era verdade, pois a explosão tinha sido acidental.
Outro
caso é o de Christian de Chergé (1937-1996) e seus companheiros,
que formavam uma comunidade de monges trapistas em Tibhirine, na
Argélia. Diante dos constantes ataques de fundamentalistas islâmicos
na região, a comunidade precisou enfrentar o duro discernimento de
decidir se permanecia ali ou se retornava à França. Eles decidiram
permanecer e, em 1996, vinte homens armados invadiram a abadia e
sequestraram sete monges, incluindo Christian, mantendo-os reféns e
decapitando-os dois meses depois.
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Salvo d’Acquisto |
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Christian de Chergé |
CARTA
APOSTÓLICA
EM
FORMA DE «MOTU PROPRIO»
DO
SUMO PONTÍFICE
FRANCISCO
MAIOREM
HAC DILECTIONEM
SOBRE
A OFERTA DA VIDA
«Ninguém
tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos»
(Jo 15, 13).
São
dignos de especial consideração e honra aqueles cristãos que,
seguindo mais de perto as pegadas e os ensinamentos do Senhor Jesus,
ofereceram de forma voluntária e livremente a vida pelos outros»,
perseverando «até à morte neste propósito.
Certamente
a oferta heroica da vida, sugerida e apoiada pela caridade, exprime
uma verdadeira, plena e exemplar imitação de Cristo e, portanto,
merece aquela admiração que a comunidade dos fiéis costuma
reservar a quantos de maneira voluntária aceitaram o martírio de
sangue e exerceram de modo heroico as virtudes cristãs.
Com
o conforto do parecer favorável manifestado pela Congregação para
as Causas dos Santos que, na Sessão Plenária de 27 de setembro de
2016, estudou atentamente se estes cristãos merecem a beatificação,
estabeleço que sejam observadas as seguintes normas:
Art.
1
A
oferta da vida é um novo caso no processo de beatificação e
canonização, que se diferencia do caso sobre o martírio e sobre a
heroicidade das virtudes.
Art.
2
A
oferta da vida, a fim de que seja válida e eficaz para a
beatificação de um Servo de Deus, deve responder aos seguintes
critérios:
a)
oferta livre e voluntária da vida e aceitação heroica propter
caritatem de uma morte certa e a curto prazo;
b)
nexo entre a oferta da vida e a morte prematura;
c)
exercício, pelo menos em grau ordinário, das virtudes cristãs
antes da oferta da vida e, depois, até à morte;
d)
existência da fama de santidade e de sinais, pelo menos depois da
morte;
e)
necessidade do milagre para a beatificação, ocorrido depois da
morte do Servo de Deus e por sua intercessão.
Art.
3
A
celebração do inquérito diocesano ou eparquial e a relativa
Positio são reguladas pela Constituição Apostólica Divinus
perfectionis magister de 25 de janeiro de 1983, em Acta Apostolicae
Sedis Vol. LXXV (1983, 349-355), e pelas Normae servandae in
inquisitionibus ab Episcopis faciendis in Causis Sanctorum de 7 de
fevereiro do mesmo ano, em Acta Apostolicae Sedis Vol. LXXV (1983,
396-403), exceto o que se segue.
Art.
4
A
Positio sobre a oferta da vida deve responder ao dubium: An constet
de heroica oblatione vitae usque ad mortem propter caritatem necnon
de virtutibus christianis, saltem in gradu ordinario, in casu et ad
effectum de quo agitur.
Art.
5
Os
seguintes artigos da citada Constituição Apostólica são alterados
da seguinte forma:
Art.
1:
“Aos
Bispos diocesanos, às autoridades eclesiásticas e a quantos a eles
são equiparados pelo Direito, no âmbito da sua jurisdição, seja
em virtude do próprio ofício, seja por instância dos fiéis,
individualmente, ou de legítimas associações ou por meio dos seus
representantes, compete o direito de investigar sobre a vida, as
virtudes, a oferta da vida ou o martírio e a fama de santidade, de
oferta da vida ou de martírio, sobre os possíveis milagres e,
eventualmente, sobre o culto antigo do Servo de Deus, para o qual se
pede a canonização”.
Art.
2, 5:
“O
inquérito sobre presumíveis milagres faça-se separadamente do
inquérito sobre as virtudes, sobre a oferta da vida ou sobre o
martírio”.
Art.
7, 1:
“Estudar,
juntamente com os colaboradores externos, as causas que lhes foram
encomendadas e preparar as Positiones sobre as virtudes, sobre a
oferta da vida ou sobre o martírio.
Art.
13, 2:
“Se
o Congresso julgar que a causa foi instruída segundo a lei,
estabelecerá a qual dos Relatores se deve confiar a mesma; por sua
vez, o Relator, ajudado por um colaborador externo, preparará a
Positio sobre as virtudes, sobre a oferta da vida ou sobre o
martírio, segundo as regras da crítica que devem ser observadas na
hagiografia.
Art.
6
Os
seguintes artigos das citadas Normae servandae in inquisitionibus ab
Episcopis faciendis in Causis Sanctorum são alterados desta forma:
Art.
7:
“A
causa pode ser recente ou antiga; diz-se recente, se o martírio, as
virtudes ou a oferta da vida do Servo de Deus podem ser provados
mediante as deposições orais de testemunhas oculares; diz-se antiga
quando as provas relativas ao martírio ou as virtudes podem
retirar-se de fontes escritas”.
Art.
10, 1°:
“Nas
causas, sejam recentes sejam antigas, uma biografia de um certo valor
histórico sobre o Servo de Deus, se existe, ou, na falta desta, uma
cuidada relação cronológica sobre a vida e as atividades do Servo
de Deus, sobre as suas virtudes ou sobre a oferta da vida ou sobre o
martírio, sobre a fama de santidade e de milagres, sem omitir aquilo
que parece contrário ou menos favorável à mesma causa”.
Art.
10, 3°:
“Só
nas causas recentes, um elenco de pessoas que podem contribuir a
explorar a verdade sobre as virtudes ou sobre a oferta da vida ou
sobre o martírio do Servo de Deus, como também sobre a fama de
santidade e de milagres, ou então impugná-la.
Art.
15, a:
“Recebido
o relatório, o Bispo entregue ao Promotor de Justiça ou a outro
experto tudo aquilo que foi adquirido até àquele momento, de forma
que possa preparar os interrogatórios úteis para investigar e
colocar à luz a verdade acerca da vida, das virtudes, da oferta da
vida ou do martírio, da fama de santidade, da oferta da vida ou do
martírio do Servo de Deus”.
Art.
15, b:
“Nas
causas antigas os interrogatórios dizem respeito apenas à fama de
santidade, de oferta da vida ou de martírio ainda presente e, se for
o caso, ao culto prestado ao Servo de Deus em tempos mais recentes”.
Art.
19:
“Para
provar o martírio, o exercício das virtudes ou a oferta da vida e a
fama de milagres de um Servo de Deus que tenha pertencido a qualquer
instituto de vida consagrada, uma parte notável das testemunhas
apresentadas deve ser alheia; a menos que isso seja impossível, por
motivo da particular vida do Servo de Deus”.
Art.
32:
“O
inquérito sobre os milagres seja instruído separadamente do
inquérito sobre as virtudes, ou sobre a oferta da vida ou sobre o
martírio e se realize em conformidade com as seguintes normas”.
Art.
36:
“São
proibidas nas igrejas as celebrações de qualquer gênero, ou
panegíricos sobre os servos de Deus, cuja santidade de vida ainda
está sujeita a legítimo exame. Mas também fora da igreja é
necessário abster-se daqueles atos que poderão induzir os fiéis a
considerar, erroneamente, que o inquérito feito pelo bispo sobre a
vida e sobre as virtudes, ou sobre o martírio ou sobre a oferta da
vida do Servo de Deus, comporta a certeza da futura canonização do
Servo de Deus”.
Tudo
o que deliberei com esta Carta Apostólica em forma de Motu proprio,
ordeno que seja observado em todas as suas partes, não obstante
qualquer disposição contrária, mesmo se digna de especial menção,
e estabeleço que seja promulgado mediante a publicação no diário
“L’Osservatore Romano”, entrando em vigor no mesmo dia da
promulgação e que, sucessivamente, seja inserido em Acta
Apostolicae Sedis.
Dado
em Roma, em São Pedro no dia 11 de julho de 2017 quinto ano do nosso
Pontificado.
FRANCISCO