O peregrino que
se proponha conhecer as origens cristãs do Velho Continente não pode deixar de
visitar a gruta de Subíaco, local escolhido pelo jovem Bento de Núrsia para
consumar sua entrega a Deus, abandonando a vida de estudos que até então levava
na Roma dos retóricos e literatos. E os que hoje trilham seus passos sentem uma
forte atração pelo local, marcado misteriosamente pela presença do santo
Patriarca e Patrono da Europa.
Enquanto se sobe
pelos íngremes caminhos que conduzem ao mosteiro - exercício desde logo
recompensado pelo belíssimo panorama -, o visitante pode discernir, se não
através de voz humana, certamente pela da graça, aquele chamado do varão de
Deus que atraiu legiões de almas à vida monástica: "Escuta, filho meu, os
preceitos do mestre, e inclina o ouvido do teu coração. Recebe de bom grado o
conselho de um bom pai, e cumpre-o eficazmente, para que, pelo trabalho da
obediência, voltes Àquele de Quem te havias afastado".
Ao atento
observador não passarão despercebidas algumas árvores que adornam o caminho, as
quais bem simbolizam a história desta instituição. São vegetais de
inacreditável robustez, cujas raízes se embrenharam pelo solo pedregoso e
lograram subsistir em condições desfavoráveis. Enfrentaram os ventos das
intempéries e os da História, mantendo-se eretas apesar das adversidades, e
ostentando uma vitalidade que desperta surpresa e admiração.
Assim é a Ordem
Beneditina. Nascida da vocação de São Bento, conta ela hoje quase 1.500 anos de
existência. Atravessou todas as catástrofes, venceu as rudezas das guerras e as
deficiências dos homens, e olha sobranceira para um passado que lhe valeu uma
legião de filhos canonizados e dezesseis Papas saídos do silêncio de seus
claustros. Dezesseis também foram os sucessores de São Pedro que se colocaram
sob a proteção deste santo fundador - curiosamente, nenhum deles foi beneditino
-, entre os quais nosso atual Romano Pontífice, Bento XVI.
Se a Europa
cristã deve, em larga medida, a esta Ordem seu itinerário de conversão e
civilização, também o século XX, palco de acontecimentos que mudaram os rumos
da humanidade, recebeu a ação benéfica dela emanada, por meio de uma figura
talvez pouco conhecida: o Beato Columba Marmion.
O
menino vestido de negro
Nasceu ele em
Dublin, Irlanda, a 01 de abril de 1858, no seio de uma família de sólida
formação católica. Sendo de frágil compleição, seus pais, William Marmion e
Herminie Cordier, se apressaram em conduzilo à fonte batismal, dando-lhe o nome
de José.
Criança de
privilegiada inteligência e equilíbrio temperamental, parecia externar sob
todos os aspectos uma vocação sacerdotal, embora não dispensasse os
entretenimentos próprios à idade. Observando estes sinais, os pais tomaram uma
singular decisão: vesti-lo sempre de negro, prevendo o hábito eclesiástico que
um dia haveria de tomar.
Explicaram-lhe
que procediam assim porque seria sacerdote. Mas o menino pareceu não se
importar muito com isso. Estava mais interessado em escalar árvores e capturar
borboletas. Enquanto os irmãozinhos trajavam alegres e coloridas vestimentas,
segundo o gosto irlandês, José se distinguia por sua escura roupagem que, de
fato, um dia trocaria pela batina.
Sacerdote aos 23 anos
Dentre os seis
filhos daquele lar cristão, quatro foram agraciados pela vocação religiosa.
Três irmãs de José seguiram a vida consagrada e ele próprio, após realizar com
êxito promissor os primeiros estudos, ingressou no seminário diocesano de Dublin.
Junto aos
oitenta jovens que ali almejavam o estado de perfeição, Marmion iniciou uma
trajetória luminosa, assinalada desde os primórdios por uma avidez teológica e
ardente piedade, o que faria um colega seminarista testemunhar: "Ele era
um jovem santo e cheio de ideias".
O aproveitamento
nos estudos fez seus superiores depositarem nele as melhores esperanças.
Enviaram-no a Roma, onde estudou no Pontifício Colégio Irlandês e, em seguida,
no Propaganda Fide. Neste último, distinguiu-se em todas as matérias, e sob a
égide do futuro Cardeal Francesco Satolli tornou-se um tomista de escol. Os
ensinamentos do Doutor Angélico beneficiaram decisivamente sua vida espiritual,
pois dele aprendeu a nunca dissociar da vida de santidade o conhecimento
doutrinário, tal como ensinaria mais tarde a seus monges: "Um raio de luz
do alto é mais eficaz do que todos os raciocínios humanos".
Esse progresso
fê-lo caminhar a passos rápidos para a ordenação. Em 16 de abril de 1881
recebeu o diaconato, e a 16 de junho do mesmo ano foi ordenado sacerdote na
igreja romana de Santa Ágata dos Godos. Contava, na ocasião, 23 anos.
A pedido de seu
Bispo, logo retornou para a Irlanda levando na alma mil propósitos salutares,
algumas incógnitas, e um antigo sonho: ser missionário na Austrália.
Sua alma permanecia insatisfeita
De volta à
pátria, padre Marmion foi designado pároco no vilarejo de Dundrum, ofício ao
qual se entregou de corpo e alma. Por pouco tempo, porém, pois ao cabo de um
ano, foi chamado pelo Bispo de Dublin para lecionar no Seminário maior de
Clonliffe.
Nesses primeiros
tempos de sacerdócio sua alma, contudo, permanecia insatisfeita. Encontrava-se
como acéfalo em seu percurso espiritual. Sentia precisar de um mestre que o
guiasse para a Pátria celeste. Uma pergunta rodava em seus pensamentos: não
estaria chamado à vida religiosa, ao invés de integrar o clero secular? E a
continua lembrança de um encontro que o marcara a fundo acabaria por pesar, em
definitivo, neste caudal de incertezas, conduzindo-o para o claustro.
Encontro com o carisma beneditino
Tal encontro
dera-se no mês de julho de 1881, quando o jovem presbítero retornava de Roma
com o coração ainda acalentado pelas graças da ordenação. A fim de visitar um
amigo do seminário que se fizera beneditino em Maredsous, na Bélgica, alterou o
percurso de volta e, na noite do dia 23, apresentou-se nessa abadia, onde o
irmão porteiro o recebeu com a hospitalidade característica da Ordem.
A abadia de
Maredsous constitui, por si só, um espetáculo consolador para qualquer
católico. Quando o padre Marmion a conheceu, nela viviam 130 monges, segundo o
mais puro espírito da fundação. A igreja, centro da vida comunitária, ergue-se
no alto de uma montanha, em grandioso estilo neogótico, parecendo simbolizar,
ela mesma, o voto de estabilidade feito pelos membros da Ordem.
Emoldurado por
árvores - que quase ousaríamos qualificar como "disciplinadas" e
"monacais" -, o templo sagrado se desdobra num conjunto arquitetônico
imponente, no qual transparece um equilíbrio perfeito entre o rigor e a suavidade,
a seriedade e o sorriso.
Ali se
desenvolviam as múltiplas atividades dos monges: o trabalho manual, a
administração de duas escolas para meninos e jovens, o cultivo da horta, o
labor intelectual e literário, o esmero pelo canto gregoriano e, sobretudo, uma
impecável Liturgia, expressão mais elevada do ideal beneditino.
Foi por acaso
que padre Marmion chegou a Maredsous. Mas no silêncio reinante no interior
daquelas paredes de pedra encontrou o que até então buscara com afã. E se quase
quinze séculos o separavam da morte de São Bento, a figura do fundador da Ordem
permanecia tão viva ali, que o jovem sacerdote tinha a impressão de tê-lo
acabado de cumprimentar nesse momento.
Voltou para
Dublin cativado por aquela atmosfera monástica, com as palavras do Abade
Plácido Wolter latejando em sua consciência: "Tens uma vocação beneditina
muito maior que a de teu amigo".
Noviciado
e vida de recolhimento
Seguindo o
conselho do seu Bispo, esperou algum tempo antes de tomar uma decisão. Mas
transcorridos cinco anos de ministério em sua cidade natal, padre Marmion não
mais se questionava sobre a autenticidade de seu chamado para a vida religiosa.
Havia decidido ouvi-lo.
Após obter as
licenças necessárias, chegou a Maredsous no mês de novembro de 1886, desta vez
para ficar. Durante o noviciado, precisou mudar de costumes, cultura e língua,
o que não foi fácil, mas em meio a tais lutas confessou: "Estou convencido
de estar no lugar onde Deus me quer. Encontrei grande paz, e sinto-me
extremamente feliz". Escolheu o nome de Columba, evocando o santo
missionário irlandês do período merovíngio, e pôs-se a praticar as palavras da
Regra: "Escuta, filho meu, os preceitos do mestre, e inclina o ouvido do
teu coração".
A almejada
profissão se deu em 1891, após a qual os superiores pensaram em enviá-lo ao
Brasil. Por fim, acabaram encaminhando-o para Lovaina, onde a Abadia de
Maredsous pretendia fundar um novo mosteiro.
O período
decorrido desde seu noviciado até o fim da permanência em Lovaina constituiu o
cerne de sua vida de recolhimento. Oculto, submisso e modesto, Dom Columba
transformou-se num contemplativo. Buscava Cristo e Sua Mãe a todo momento,
compreendendo ser no silêncio que Eles Se deixam encontrar: "Se nossa alma
se fechar aos rumores da Terra, ao tumultuar das paixões e dos sentidos, o
Verbo Encarnado tomará pouco a pouco posse dela; far-nos-á compreender que as
mais profundas alegrias são aquelas que encontramos no seu serviço".
Mais do que
nunca, via a santidade como um dom de Deus, esmola divina que homem algum
jamais merecerá: "Nossa vida sobrenatural oscila entre estes dois polos:
de um lado, devemos ter a convicção íntima de nossa incapacidade de atingir a
perfeição sem o auxílio de Deus; de outro, devemos estar possuídos da
inabalável esperança de tudo encontrarmos na graça de Jesus Cristo".
Qual dócil
menino, ele se deixava plasmar pelas mãos de seus superiores, um dos quais
registrará: "Nunca vi um religioso mais obediente". A paz e a
serenidade lhe foram dadas em recompensa pelos sofrimentos heroicamente
suportados, levando-o a dizer: "Agora que fiz todos os sacrifícios, Nosso
Senhor devolveu-me, pelo caminho da obediência, tudo quanto por Ele eu havia
abandonado".
Exímio pregador
de retiros, dom Columba era solicitado por conventos e comunidades, nos quais
sua presença não se apagava de nenhuma memória. Era instrumento de conversões,
suscitava vocações, ensinava através da própria conduta.
Alma
ornada pela virtude da sabedoria
Teve, porém, de
voltar para Maredsous. O mesmo claustro que o recebera como noviço, aos 27 anos
de idade, viu-o retornar de Lovaina aos 51, pronto para exercer a mais alta
missão que o Senhor lhe haveria de destinar.
Dom Hildebrando
de Hemptinne, que vinha governando Maredsous por muitos anos, fora designado
pelo Papa primeiro Primaz da Confederação Beneditina e, devido às suas frequentes
permanências em Roma, tornou-se necessário escolher outro abade para o
mosteiro. O Capítulo elegeu, por grande maioria, Marmion, precisamente por
encontrar nele o perfil do autêntico beneditino. "Eu obedeço e aceito a
vontade de Deus", disse no dia da eleição, em outubro de 1909.
Enquanto abade,
Dom Columba foi, antes de tudo, um mestre espiritual, conhecedor das vias por
onde as almas devem ser conduzidas. Suas conferências semanais para a
comunidade suscitavam o entusiasmo dos monges. Um deles, não se conformando em
ver aquelas maravilhas confinadas na sala capitular, tomou a iniciativa de
anotá-las e torná-las públicas. Assim se originou a trilogia: Cristo, vida da
alma (1917), Cristo em seus mistérios (1919), e Cristo, ideal do monge (1922),
três obras que são expressões fidedignas do espírito cristocêntrico do autor. O
Papa Bento XV que fazia uso pessoal de Cristo, vida da alma, chegou a
recomendá-lo a um Bispo nestes termos: "Leia isto. É a doutrina da
Igreja".
Dom Marmion teve
de enfrentar questões espinhosas no exercício de seu cargo, e tornou patente
aos olhos dos monges de Maredsous que a virtude da sabedoria, tema frequente de
suas prédicas, era um ornato de sua própria alma. Atuou como homem-chave nas
negociações que trouxeram ao seio da Igreja um convento anglicano; foi
solicitado a fundar uma abadia no Congo; por manifesto desejo do Papa, enviou
monges para cuidar da Abadia da Dormição, em Jerusalém. Corolário de suas
atividades foi a fundação da Congregação Belga da Anunciação, nova jurisdição da
Ordem, sediada em Maredsous.
Beato Columba (à esquerda), com outros dois abades da Ordem. |
Mostrou assim
não estarem as qualidades diplomáticas, administrativas e psicológicas em
choque com o espírito de contemplação. Pelo contrário, uma vida interior bem
levada conduz a resolver com o maior acerto as questões temporais que a
Providência puser no nosso caminho.
O Abade Marmion
amava seus filhos espirituais e era estimado por eles. Sob seus cuidados e
vigilância, Maredsous progrediu a olhos vistos, parecendo espelhar a vida que
os bem-aventurados gozam no Céu. O Senhor lhe deu uma comunidade louvável, na
qual as virtudes e dotes naturais se traduziam em obras de excelência e
perfeição.
E quando o
horizonte ameno da Abadia se obscureceu pelos estertores da Primeira Guerra
Mundial, os monges puderam comprovar a veracidade da palavra do Evangelho:
"O bom pastor dá a vida por suas ovelhas" (Jo 10, 11).
Despendendo as últimas energias
Embora
preservados dos bombardeios de tropas inimigas, os habitantes de Maredsous
sofreram quase tanto quanto se a abadia tivesse sido destruída. A cada
instante, esperava-se um desenlace trágico que viesse reduzi-la a pó,
ocasionando uma apreensão não pequena nos monges. A fome e toda sorte de
privações rondavam a comunidade, que abriu suas portas para os feridos e
desabrigados.
Vivendo na quadra mais dramática de sua existência,
o Abade Columba lutava por salvar a formação dos noviços, levando-os para o
exílio. Esta decisão lhe causou incontáveis dissabores e, para completar as
amarguras que o contristaram, via seus monges serem arrancados da vida
monástica para servir o exército, expostos a todos os perigos de corpo e de
espírito.
Em 1918, quando
a Guerra terminou, restavam-lhe os últimos cinco anos de vida, e ele os
empregou totalmente na restauração da disciplina em Maredsous, despendendo
nesse último esforço as poucas energias que ainda lhe restavam. Na tarde de 30
de janeiro de 1923, vítima de uma epidemia de gripe que assolava a Bélgica, ele
rendeu sua alma ao Criador.
Alquebrado por
uma existência empregada no serviço de Deus, Dom Columba Marmion abandonava-
se, uma vez mais, naquele supremo momento, aos desígnios de Jesus Crucificado,
que ele viera buscar e encontrara no claustro. Seus filhos espirituais,
recebendo de suas mãos, agora trêmulas, a tocha da caridade, tinham consciência
de que aquele pai e mestre lhes transmitia e deixava como herança a realização
das palavras com as quais São Bento concluiu seus ensinamentos: "Tu, pois,
quem quer que sejas, que te apressas rumo à Pátria celeste, cumpre, com o
auxílio de Cristo, esta Regra, e então chegarás por fim, com a proteção de
Deus, aos maiores cumes da doutrina e das virtudes".
Irmã Carmela Werner Ferreira, EP
Um comentário:
Que maravilha a vida desse homem santo, sacerdote de Deus. Glória a Deus que suscita santos para nos servir de exemplo
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