Santa Catarina Labouré:
A Santa do silêncio e da confiança
Somente
após sua morte foram descerrados os véus da heroica humildade daquela freira
cujo silêncio ocultara aos olhos do mundo sua grandiosa missão: vidente e
mensageira da Rainha dos Céus.
Em fins de 1858,
corriam por Paris notícias a respeito das aparições de Nossa Senhora a uma
camponesa dos Pirineus, em Lourdes, rincão de pouca relevância do território
francês. Trocavam-se impressões sobre as extraordinárias curas constatadas após
o uso das águas da miraculosa nascente da Gruta de Massabielle e, sobretudo,
comentava-se a celebridade da jovem vidente, Bernadete Soubirous, cuja
despretensão e inabalável fé suscitavam a admiração do povo, que já a venerava
como santa.
Difundindo-se
célere pela capital francesa, a novidade chegou aos ouvidos também das Filhas
da Caridade de São Vicente de Paulo, que serviam aos idosos do asilo de
Enghien. Entabularam uma animada conversa, na qual se ouviu uma exclamação
saída dos lábios de uma religiosa que, embora discreta, mostrava-se tomada por
veemente entusiasmo naquele momento: "É
a mesma!". Nenhuma delas alcançou o significado destas palavras.
Entreolhando-se com estranheza, continuaram a falar, como se nada tivessem
ouvido.
"Um arco-íris místico entre a Rue du Bac e
Lourdes"
Em 1830, uma
noviça da Casa-Mãe da Companhia das Filhas da Caridade, situada em Paris à Rue
du Bac, também fora contemplada com aparições de Nossa Senhora, as quais já
haviam adquirido fama mundial. Além de fazer importantes revelações sobre o
futuro da Congregação e da França, a Mãe de Deus confiara à vidente a missão de
mandar cunhar uma medalha através da qual Ela derramaria abundantes graças
sobre o mundo. A distribuição dos primeiros exemplares deu-se em razão da
epidemia de cólera que grassava por Paris, e foram tantas e tão surpreendentes
as curas atribuídas ao uso dessa medalha - não sem razão denominada pelo povo
de Milagrosa -, que em pouco tempo ela já se difundira por diversos países.
O nome da vidente, contudo, permanecia incógnito,
mesmo entre suas irmãs de hábito. E só foi revelado após sua morte: era a
silenciosa, diligente e sempre bem humorada Irmã Catarina Labouré! Seus olhos
azuis, serenos e límpidos, brilhavam de alegria ao ouvir falar pela primeira
vez das recentes aparições de Lourdes, um eco das ocorridas na Rue du Bac. Era
outra luz que despontava no mesmo caminho de misericórdia traçado pela Rainha
do Céu para conduzir a humanidade a uma nova era de graças marianas.
Não havia
dúvida, era "a mesma"! À
noviça de Paris, a Virgem ensinara a fórmula para invocá-La: "Ó
Maria concebida sem pecado". A Bernadete, assim se apresentara: "Eu
sou a Imaculada Conceição". Exultante de contentamento, Irmã
Catarina passou a nutrir profunda admiração pela nova vidente, embora não a
conhecesse. Não sabia ela que, em Lourdes, Bernadete trazia ao pescoço a
Medalha Milagrosa quando viu a Mãe de Deus, e provavelmente nutria em seu
coração nobres sentimentos de veneração pela incógnita vidente da Virgem da
Medalha... Pelo prisma sobrenatural, havia uma estreita união de almas das duas
santas, formando "como que um
arco-íris místico entre a Rue du Bac e Lourdes".
Santa Bernadete
dava provas de heroica humildade, restituindo à Rainha do Céu as honras e
louvores que o povo lhe tributava. Santa Catarina praticava de modo diferente
igual humildade: vivia entregue às mais modestas funções no asilo de Enghien,
onde serviu aos idosos e pobres durante mais de quarenta anos.
Infância nimbada de fé e seriedade
Quando Catarina
nasceu, em 02 de maio de 1806, permaneciam ainda na França as chagas da
irreligião abertas pela Revolução de 1789. No pequeno povoado borgonhês de
Fain-lès-Moutiers, onde a família Labouré residia, não havia sacerdote. Para
batizar a recém-nascida, foi preciso chamar o pároco do lugarejo vizinho.
Apesar da generalizada negligência religiosa do tempo, da qual não se excluía
seu pai, Pedro Labouré, a fé de Catarina e de seus nove irmãos foi
salvaguardada e fortalecida graças ao empenho da mãe, Madalena Gontard, cuja
principal preocupação na educação dos filhos foi inculcar-lhes uma ilimitada
confiança na Santíssima Virgem.
Os primeiros
anos de Zoé - assim se chamava nossa
santa, antes do ingresso na vida religiosa - transcorreram sem nuvens, em meio
às alegrias de uma infância perfumada pela inocência. Adquiriu desde cedo gosto
pela oração e não hesitava em abandonar os infantis divertimentos quando a mãe
a chamava para rezarem juntas diante da singela imagem de Nossa Senhora
entronizada numa sala da residência.
Dotada de um
precoce senso de responsabilidade e seriedade, Zoé logo percebeu as
dificuldades da mãe na execução das árduas tarefas de manutenção da casa, e
resolveu ajudá-la. Antes de completar oito anos, já sabia costurar, ordenhar as
vacas, preparar a sopa e varrer o chão. E a compenetração que a movia a abraçar
com alegria a monótona faina diária - tanto no lar, durante a infância e
juventude, quanto no asilo de Enghien, ao longo de mais de quatro décadas - foi
por ela mesma explicitada com palavras simples e cheias de luz: "Quando se faz a vontade de Deus,
jamais se sente tédio".
Uma graça transformante
Aos nove anos de
idade, a pequena Zoé viu o horizonte de sua vida toldar-se pela tragédia: em
outubro de 1815, faleceu sua mãe. Ao contemplar seu corpo inerte, chorou
copiosamente, mas não por muito tempo, pois ela própria lhe havia ensinado a
quem recorrer nos momentos de aflição. Passado o primeiro choque, dirigiu-se à
sala onde se encontrava a imagem de Nossa Senhora, diante da qual tantas vezes
rezara em companhia da mãe. Resoluta, subiu numa cadeira para pôr-se à altura
da imagem, abraçou-a e exclamou, entre soluços: "De agora em diante, Vós sereis minha Mãe!" A resposta da
Rainha do Céu foi imediata. A menina, que ali chegara débil e desfeita em
lágrimas, retirou-se forte e disposta a enfrentar as adversidades. Foi essa a
última vez que ela chorou na vida, pois a virtude da fortaleza a acompanhou num
crescendo até o fim de seus dias.
Momento "a sós" com a Virgem Maria.
Nossa Senhora conversa com a santa noviça
durante uma a duas horas... Nunca a santa
revelou o conteúdo dessa conversa.
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Em 1871, quando
já era uma religiosa de 65 anos, o movimento revolucionário da Comuna de Paris
proporcionou-lhe diversas ocasiões de manifestar, com heroísmo, essa virtude.
Um dia, por exemplo, tomou a iniciativa de dirigir-se ao quartel-general dos
insurrectos para defender sua superiora, contra quem fora expedida uma ordem de
detenção. Expôs seus argumentos com tal firmeza ante quase sessenta comunheiros
ali presentes que terminou por sair vitoriosa. Impressionados, os
revolucionários passaram a tratá-la com muita deferência; chegaram inclusive a
pedir-lhe para depor no julgamento de uma prisioneira, e tomaram seu
depoimento, favorável à ré, como última palavra no caso.
Um desdobramento
dessa graça recebida na infância foi a constância de ânimo com a qual suportou
as inúmeras manifestações de impaciência e incredulidade de seu confessor
quando, por ordem de Nossa Senhora, lhe relatava as visões havidas. Poucos
meses antes de sua morte, ela confidenciou à superiora que a atitude desse
sacerdote constituíra para ela um verdadeiro martírio. Ela padeceu com a
fortaleza dos mártires esse holocausto silencioso, que lhe fora anunciado pela
própria Santíssima Virgem, na primeira de suas aparições: "Minha filha, o Bom Deus
quer te encarregar de uma missão. Terás muitas dificuldades, mas as superarás,
considerando que ages para a glória d'Ele. Saberás discernir o que vem do Bom
Deus. Serás atormentada até que o digas àquele que está encarregado de te
conduzir. Serás contraditada. Mas terás a graça. Não temas. Dize tudo com
confiança e simplicidade. Tem confiança".
Uma verdadeira filha de São Vicente de Paulo
"Ficarás feliz em vir a mim. Deus tem desígnios
a teu respeito".
Quando tinha cerca de 14 anos, Catarina ouviu em sonho estas palavras dirigidas
a ela por um sacerdote desconhecido, cujo olhar penetrante e cheio de luz gravou-se
para sempre em sua lembrança. Alguns anos mais tarde, visitando uma casa das
Filhas da Caridade, deparou-se com um quadro do fundador da Congregação, São
Vicente de Paulo, em cuja fisionomia reconheceu o sacerdote do sonho. Ficou-lhe
clara, então, a vocação à qual já se sentira tantas vezes atraída: seria filha de
São Vicente!
Entretanto,
quando no seu 21º aniversário, em 02 de maio de 1827, anunciou em casa sua
decisão, o pai se opôs taxativamente. Após tentar, em vão, dissuadi-la de
abraçar a vida religiosa, ele a enviou a Paris, para trabalhar no restaurante
de um de seus irmãos, na ilusão de que ali ela acabaria por encontrar um bom
partido e casar-se.
Aquele ambiente,
porém, frequentado por operários rudes e muitas vezes imodestos, não fez senão
fortalecer a pureza ilibada da jovem. Tal era seu amor pela vocação que já se
portava como uma autêntica Filha da Caridade, cumprindo com perfeição as
recomendações feitas pelo Santo às suas filhas espirituais, entre as quais
esta: "Se às religiosas [de clausura] é exigido um grau de perfeição, às
Filhas da Caridade devem ser exigidos dois".
Catarina não
desejava outra coisa senão abraçar por inteiro essa ousada meta, e perseverou
em seu propósito até vencer a obstinação do pai. "Se observarmos bem as pequenas coisas, faremos bem as
grandes", escreveria ela, décadas mais tarde, ao terminar um período
de exercícios espirituais.
Nossa Senhora aparece-lhe na capela do convento da Rue du Bac, em Paris, no dia 27 de novembro de 1830. |
A confiança e a simplicidade de uma alma inocente
Finalmente, em
21 de abril de 1830, Catarina chegou ao Convento da Rue du Bac. O Conselho das
Superioras logo discerniu nela uma autêntica vocação: "Tem 23 anos e convém muito à nossa
comunidade: piedosa, bom caráter, temperamento forte, amor ao trabalho e muito
alegre", foi o parecer escrito a seu respeito. Ademais, era uma
genuína camponesa, tal qual desejava São Vicente, que tomara os bons predicados
das aldeãs como base natural para perfilar o ideal de virtude das Filhas da
Caridade. E, quer na vida comunitária, quer no serviço dos pobres, e mesmo
durante as manifestações sobrenaturais das quais foi objeto, sempre brilhou em
Irmã Catarina uma das virtudes mais amadas pelo Santo Fundador: a simplicidade
de coração.
"O espírito das camponesas é simplíssimo: nem
rastro de fingimento nem palavras de duplo sentido; não são teimosas nem
apegadas às suas opiniões. [...] Assim, minhas filhas, devem ser as Filhas da
Caridade, e sabereis que o sois se fordes simples, sem recalcitrâncias,
submissas ao parecer dos outros e cândidas em vossas palavras, e se vossos
corações não pensarem uma coisa enquanto vossas bocas pronunciam outra". Este ideal
delineado por São Vicente encontrou, quase dois séculos depois, perfeita
realização na alma desta dileta filha.
Na semana
seguinte à sua chegada ao convento, apareceu-lhe três vezes, em dias
consecutivos, o coração de São Vicente, prenunciando as iminentes desgraças que
se abateriam sobre a França, com a promessa de que as duas Congregações por ele
fundadas não pereceriam. A feliz noviça teve a graça de ver também Cristo
presente na Sagrada Hóstia, durante todo o tempo de seu seminário, "exceto todas as vezes que eu
duvidava", confidenciou ela.
Imbuída da Fé
que move as montanhas e atrai a benevolência de Deus, Catarina não titubeou em
pedir mais: queria ver Nossa Senhora. Na véspera da festa do Fundador - que
então se comemorava a 19 de julho -, confiou-lhe seu desejo numa breve oração e
foi dormir esperançosa: "Deitei-me com a ideia de que naquela mesma noite
veria minha boa Mãe. Havia muito tempo que queria vê-La". E foi
generosamente atendida, não só "naquela mesma noite", como também em
duas outras aparições, uma em novembro e outra em dezembro do mesmo ano de
1830.
Com o passar dos
anos, intensificou-se nela a confiança filial e ilimitada que depositava nesses
três pilares de devoção, a tal ponto que, pouco antes de falecer, ela não pôde
esconder o espanto quando a superiora lhe perguntou se não tinha medo da morte:
"Por que temeria ir ver Nosso
Senhor, sua Mãe e São Vicente?".
Catarina conservou-se sempre em grande
humildade e recolhimento em sua comunidade.
Ninguém, com exceção a madre, sabia
que ela era a vidente da Medalha Milagrosa.
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"A Santíssima Virgem escolheu bem"
Santa Catarina
jamais violou o segredo acerca de sua condição de vidente e mensageira das
aparições da Medalha Milagrosa. Contudo, muitas pessoas chegaram a vislumbrar
nela a predileta da Rainha do Céu, tal era seu amor a Deus, não só afetivo,
pois inegável era sua ardorosa piedade, mas também efetivo, como o testemunhou
uma de suas contemporâneas: "Suas
ações, em si mesmas ordinárias, ela as fazia de maneira extraordinária".
Havia nela algo de discreto, alcandorado e inefável.
Sua santidade
era a principal mantenedora do segredo. Às irmãs que ousaram interpelá-la nesse
sentido, sua resposta consistiu sempre num absoluto silêncio. Um silêncio
nascido da humildade, sem nada de taciturno nem de ríspido; pelo contrário, um
silêncio sacral, que chegava a despertar veneração.
Foto do corpo da santa em seu leito de morte... |
Quando, após sua
morte, foi anunciado às Filhas da Caridade o nome da vidente da Rue du Bac,
tiveram elas uma reação marcada mais pela admiração do que pela surpresa. Não
era difícil associar a exemplar irmã à figura - já um tanto mitificada - da
vidente ignota. E era impossível não ficarem deslumbradas ao constatar a
excelência de sua humildade, que a mantivera no anonimato, embora exercendo uma
missão de alcance universal.
Quiçá naquele
momento tenha ocorrido à lembrança das irmãs o ingênuo dito que as crianças do
orfanato dirigido pelas Filhas da Caridade costumavam repetir entre si,
observando de longe a Irmã Catarina Labouré: "A Santíssima Virgem escolheu bem".15 Teriam sido estas
palavras, tão verdadeiras, mero fruto da imaginação infantil ou haveria Deus,
mais uma vez na História, revelado aos pequeninos os mistérios ocultados aos
sábios e entendidos?
Seu corpo conserva-se incorrupto, sob um dos altares da capela da Rue de Bac, casa mãe da congregação. |
Sem embargo,
mais luminosa que o heroico silêncio é a lição de confiança filial deixada por
Santa Catarina na Mãe que nunca desampara. "A confiança tem sempre esse prêmio. Pedindo com confiança, recebe-se
mais, com mais certeza e mais abundantemente. A confiança abre-nos o Sapiencial
e Imaculado Coração de Maria".
(Revista Arautos
do Evangelho Dez/2012, n. 132, p. 22 à 25).
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