Vivendo
entre dois mundos — o da Gália romana, que se extinguia, e de cujo
desmoronamento foi testemunha, e o da Gália franca, que nascia de suas cinzas e
em cuja conversão trabalhou denodadamente — Santa Genoveva serviu de ponto de
união entre romanos e bárbaros. E recebeu de Deus a missão de transmitir a fé
católica dos vencidos aos vencedores, preparando assim as sementes daquela que
seria a nação cognominada Filha Primogênita da Igreja, a França.
Corria o ano 400
de nossa era. O gigantesco Império Romano do Ocidente vivia seus últimos dias.
Na província romana da Gália (atual França), em meio aos pagãos que ainda
faziam sacrifícios humanos ao deus Thor, o cristianismo começava a lançar suas
raízes quando, vinda de além Reno, uma horda de bárbaros devastou a região quase
sem encontrar resistência. “Por que os
gauleses, outrora tão bravos, não se defenderam? Porque os romanos, com seu
luxo, tinham-lhes dado sua moleza e seus vícios”.(1) Com o tempo, a vida
recomeçou com os novos bárbaros sendo assimilados pela população do país.
Foi nesse
período que, no ano 422, na pequena cidade de Nannetodorum (hoje Nanterre), nos
arredores de Paris, nasceu em uma família cristã Genoveva, que tão importante
papel desempenharia na vida da futura nação convertida ao cristianismo.
Instrumento de grandes maravilhas
São Germano exortou Santa Genoveva a
consagrar-se inteiramente a Deus. Seus pais, Severo e Gerôncia, sendo católicos
fervorosos, procuraram formar a filha nos mesmos princípios religiosos. Dócil e
sempre aberta à ação da graça, Genoveva crescia de modo análogo ao do Menino
Jesus: “em graça e santidade diante de Deus e dos homens”.
Quando tinha de
sete a oito anos, em 430, passaram por Nannetodorum os Bispos Germano, de
Auxerre, e Lobo, de Troyes. Enviados pelo Papa São Celestino I, esse dois
luminares da Igreja na época, dirigiam-se à Inglaterra a fim de combater uma
perniciosa heresia defendida pelo monge Pelágio. Toda a população católica
reuniu-se para ouvir o sermão que Germano pregaria. Como os que são amigos mais
íntimos de Deus logo se reconhecem, o grande Prelado discerniu, entre seus
ouvintes, a menina Genoveva, que trazia na fronte o sinal dos eleitos.
Quis saber quem
era, e falar com seus pais. Quando estes se apresentaram com a filha, São
Germano, pondo a mão na cabeça da menina, disse: “Bendito dia aquele em que o
Senhor vos concedeu tal filha; os anjos a saudaram sem dúvida no seu
nascimento, e Deus Nosso Senhor a destina a ser instrumento de grandes
maravilhas”.(2)
Voltando-se
depois para Genoveva, exortou-a a consagrar-se inteiramente a Deus e a não ter
outro esposo que Jesus Cristo. A menina respondeu-lhe que nunca tivera outro
desejo senão o de viver como virgem cristã. O Bispo, vendo no chão uma moeda,
na qual estava gravada uma Cruz, tomou-a e, entregando-a a Genoveva,
recomendou-lhe que a usasse ao pescoço como sinal de sua consagração a Jesus
Cristo. Segundo alguns autores, é este o primeiro exemplo que se conhece do uso
de medalhas ao pescoço.
Certo dia de
festa, sua mãe, que por qualquer motivo não estava de bom humor, negou-lhe
permissão para ir com ela à igreja. Como Genoveva insistisse, alegando que
havendo se tornado esposa de Jesus Cristo tinha obrigação de servi-Lo do melhor
modo, a genitora, irritada, deu-lhe uma bofetada, ficando cega no mesmo
instante. Depois de um ano de cegueira, iluminou-se o espírito de Gerôncia, que
reconheceu no castigo uma justa punição de Deus. Pediu então à filha, cuja
virtude agora reconhecia, que lhe trouxesse água do poço, fazendo sobre ela o
sinal da Cruz e lavando-lhe os olhos.
Neste momento, a
cegueira foi curada. O episódio revela a humildade da mãe e o Dom dos milagres
de que já era dotada a filha.
Na cidade da qual seria a Padroeira
Naquele tempo,
não havendo em Paris e redondezas convento para as virgens que se consagravam
ao Senhor, estas, para melhor dar o exemplo, permaneciam em suas casas, em meio
a todos. Tinham lugar reservado somente na igreja. Quando chegavam a uma idade
conveniente (que era habitualmente os 25 anos), apresentavam-se ao Bispo que,
depois das preces e cerimônias apropriadas, lhes concedia o véu. Como a virtude
de Genoveva e sua piedade eram já eminentes, o Prelado admitiu-a com a idade de 15 anos. A partir de
então, como faziam as virgens consagradas, a adolescente passou a alimentar-se
apenas de legumes, a beber somente água, e cobriu-se com um cilício, passando
longas horas em oração.
Tendo seus pais
falecido nessa época, Genoveva mudou-se para a casa de sua madrinha, na cidade
de Lutécia, atual Paris, que mais tarde terá a honra de tê-la como Padroeira.
Queriam
queimá-la como feiticeira
Pouco depois de
estabelecida em Lutécia, Genoveva foi acometida por uma paralisia quase total,
acompanhada de fortes dores. Não podia servir-se de nenhum de seus membros. A
estranha doença chegou a um auge no qual ela perdeu os sentidos. Permaneceu
durante três dias nesse estado, conhecendo-se que estava viva somente pelo
fraco pulsar do coração. Durante esse período ela foi transportada, em
espírito, entre os coros dos Anjos, dando-lhe Deus a conhecer o muito que
deveria fazer e padecer por seu amor no resto de sua vida.
Parte desse
sofrimento começou para ela logo em seguida, porque, em sua inocência, comunicara a algumas pessoas indiscretas o
grande benefício de que tinha sido objeto. Ora, as almas medíocres não podem
suportar que outras vivam em horizontes mais altos. Vingam-se delas pela
calúnia e pela difamação. Assim, começaram a dizer que Genoveva aparentava
santidade para exibir-se, que suas pretensas virtudes não passavam de
fingimento, e outras coisas no gênero, sem olhar para os bons frutos que
produzia. E como a calúnia atrai mais as
almas soezes que a verdade, iniciou-se contra a Santa uma verdadeira campanha
de difamação, chegando-se ao ponto de querer-se queimá-la como feiticeira.
Ora, sucedeu
então que voltava a Lutécia, novamente a caminho da Inglaterra, o ilustre São
Germano, agora nimbado por fama universal de santidade e com o crédito de
muitos milagres e prodigiosas conversões. Ouviu as calúnias em silêncio. Limitou-se
a dirigir-se à casa onde vivia a Santa, sendo nisso acompanhado pela multidão.
Lá chegando, saudou-a com profundo
respeito e reverência, após o que foi refutando calúnia por calúnia, mostrando,
pelo contrário, o mérito dessa virgem diante de Deus. Voz tão autorizada teve
uma ação verdadeiramente exorcística, cortando pela raiz todo o vendaval
levantado pela maledicência.
A
virtude de Genoveva voltou a brilhar perante os homens. “Ela penetrava, graças
a uma luz sobrenatural, no fundo das consciências, e levava a todos, pelo seu
discurso inflamado, ao amor de Jesus Cristo. Passava sua vida em oração e
lágrimas contínuas. .... Sua abstinência era prodigiosa, e mal se poderia crer
se não se visse um excelente modelo na vida de seu mestre e diretor, São
Germano de Auxerre”.(3)
Enquanto ela
edificava a todos com suas virtudes, uma grande calamidade ameaçava abater-se
sobre Paris. O terrível Átila, rei dos mais ferozes bárbaros da época, os
hunos, tendo atravessado os Alpes e o Reno, invadia com suas hordas a Gália.
Paris estava na sua rota de sangue e destruição. Na consternação geral, muitos
pensavam em fugir da cidade, pois por onde passava o “Flagelo de Deus” – como
era conhecido –, nada mais crescia no solo devastado.
Genoveva saiu
então de seu retiro para exortar o povo a obter misericórdia de Deus, por meio
de orações, jejuns e penitências. E
àqueles que queriam fugir, disse com autoridade: “Eu vos predigo que,
pela proteção de Cristo, Paris será poupada, enquanto os lugares onde vos
quereis refugiar tombarão sob o poder do inimigo, não restando lá pedra sobre
pedra”.(4) Muitos foram os parisienses dóceis aos seus conselhos que se revezavam na igreja, numa contínua prece
ao Céu. Mas novamente o demônio suscitou outros contra ela, alegando que os
levava a uma ruína inevitável com suas pseudo-profecias. Os ânimos novamente se
acirraram de tal modo, que desejavam outra vez queimá-la. Mais uma vez São
Germano, que já gozava da glória celeste, livrou-a, desta feita por meio de seu
Arcediago. Este, chegando a Paris, reuniu o povo, mostrando como o Santo Bispo
Germano, durante sua vida, havia honrado Genoveva. Citou-lhes os testemunhos
que dela havia dado antes de morrer. Com isso, apaziguou de novo a tempestade.
A profecia da
Santa cumpriu-se à risca, pois apesar de Átila ficar correndo da cidade de
Champagne a Orléans e de Orléans a Champagne, não avançou até Paris.
Finalmente, foi derrotado por uma coligação de romanos, francos e visigodos, na
estupenda vitória de Chalons-sur-Marne, em 451.
Alguns anos mais
tarde, Paris foi sitiada, desta vez por Meroveu, terceiro rei dos francos. Os
romanos, que ainda aí conservavam forte guarnição, resistiram vários anos, até
caírem ante essa nova força. “Não se deve espantar se Santa Genoveva, que
estava lá, não evitou esse golpe, pois não tinha intenção de se opor aos
desígnios de Deus, que queria fazer dessa cidade a capital do mais florescente
reino que jamais houve sobre a Terra”(5)
Entretanto,
durante esse prolongado cerco, que reduziu Paris à mais extrema penúria,
“Genoveva, compadecida de tanta fome, juntou grande quantidade de trigo.
Conduziu-o a Paris através de inúmeras dificuldades, salvando assim a vida
daquele povo aflito”.(6)
“Essa magnânima
caridade, acompanhada de muitos milagres, deu novo lustro às suas virtudes,
fazendo-a ser venerada mesmo pelos pagãos. Chilperico, pai de Clóvis, estimava
tanto a nossa santa que nunca se atreveu a negar-lhe coisa alguma que
pedisse”.(7) Foi às suas instâncias que ele construiu um magnífico templo
primitivamente consagrado aos Apóstolos São Pedro e São Paulo e mais tarde
dedicado a essa Santa. Muitos consideram que ela contribuiu poderosamente para a conversão de Clóvis. A seu pedido, este
primeiro Rei cristão da França libertou prisioneiros, deu grandes esmolas ao
Clero e aos pobres, e edificou várias igrejas.
Seguindo o
exemplo de Genoveva, muitas jovens consagraram-se a Deus, algumas delas, como
Santa Aude, sob sua direção, chegaram a santidade eminente. A rainha Santa
Clotilde, esposa de Clóvis, tinha Genoveva em alta consideração, e sempre que
possível ia entreter-se com ela.
A fama dessa
Santa chegou tão longe, que o famoso São Simão Estilita, do alto de sua coluna
na Ásia Menor, pediu a peregrinos franceses que o recomendassem às orações
dela.
Cheia de anos e
de virtudes, Santa Genoveva entregou sua puríssima alma a Deus em 512. Toda
Paris chorou.
Milagrosa atuação post mortem
No ano 887, do
Céu, novamente salvou ela sua cidade de Paris, sitiada pelos terríveis
normandos. Pela primeira vez sua urna, cinzelada pelo famoso Santo Elói, foi
levada pelo Clero e Magistrados, o que fez levantar milagrosamente o cerco, no
momento em que o inimigo se preparava para o assalto final.
E, em 1129,
quando a epidemia chamada “dos ardentes” – porque provocava alta temperatura e
fazia inúmeras vítimas em Paris – grassava na cidade, sua intercessão foi
decisiva. Outra vez, a urna contendo seus restos percorreu a cidade, curando-se
repentinamente 14 mil enfermos.
____________________
Notas
1- Sabine du
Jeu, Sainte Geneviève, Les Éditions du Clocher, Toulouse, 1939, p. 4.
2- Edelvives, El
Santo de Cada Dia, Editorial Luis Vives, S.A., Saragoça, 1946, p. 32.
3- Les Petits
Bollandistes, Vie des Saints, d’aprés de Père Giry, par Mgr Paul Guérin, Paris,
Boloud et Barral, Libraires-Éditeurs, 1882, tomo I, p. 95.
4- Sabine du
Jeu, op. cit. p. 26.
5- Les Petits
Bollandistes, op.cit., p. 97.
6- Santos de
cada dia, organização do Pe. José Leite, S.J., Editorial A.O., Braga, 1993, p.
19.
7- Abbé
Croisset, Año Cristiano, Madrid, Saturnino Calleja, 1901, tomo I, p. 27.
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