Beato João Duns Scoto, o "Doutor Sutil". |
No dia 08 de novembro, Igreja faz memória ao Beato João Duns Scoto (John Duns Scot), presbítero e grande teólogo franciscano, defensor da Imaculada Conceição de Maria.
O Beato João Scoto, numa época onde o Dogma da Imaculada Conceição de Maria ainda não havia sido reconhecido pela Igreja, portanto de livre crença ou não, foi seu grande e importantíssimo defensor.
Nas Universidades de Oxford e Paris, onde foi professor efetivo e catedrático de teologia, apesar de sua jovem idade (faleceu aos 43 anos de idade apenas), deixou numerosos escritos e ensinamentos, especialmente luminosos no tocante à defesa da Imaculada Conceição de Maria e no aprofundamento do Mistério da Encarnação do Verbo Divino.
Transcrevo agora uma catequese proferida pelo então Papa (hoje, emérito) Bento XVI a um grupo de peregrinos reunidos no Salão São Paulo, no Vaticano, em julho de 2007.
Leiam com atenção e vejam que beleza de catequese essa proferida por nosso estimado e venerado Papa Emérito Bento XVI:
Catequese sobre
o Beato João Duns Scoto dirigida pelo Papa Bento XVI aos grupos de peregrinos
do mundo inteiro, reunidos na Sala Paulo VI para a audiência geral desta
quarta-feira (07/2007)
"Queridos irmãos
e irmãs:
Nesta manhã –
depois de algumas catequeses sobre diversos grandes teólogos – quero apresentar-vos
outra figura importante na história da teologia: trata-se do beato João Duns
Scoto, que viveu no final do século XIII.
Uma antiga
inscrição sobre seu túmulo resume as coordenadas geográficas da sua biografia: 'A Inglaterra o acolheu; a França o educou; Colônia, na Alemanha, conserva seus
restos; na Escócia ele nasceu'. Não podemos descuidar estas informações, também
porque temos poucas notícias sobre a vida de Duns Scoto. Ele nasceu
provavelmente em 1266, em um povoado que se chamava precisamente Duns, nas
proximidades de Edimburgo.
Atraído pelo
carisma de São Francisco de Assis, entrou na família dos Frades Menores e, em
1291, foi ordenado sacerdote.
Dotado de uma
inteligência brilhante e levada à especulação – essa inteligência pela qual mereceu
da tradição o título de Doctor subtilis, 'Doutor sutil' -, Duns Scoto foi dirigido aos estudos de filosofia e de teologia nas célebres
universidades de Oxford e de Paris. Concluída com êxito sua formação,
dedicou-se ao ensino da teologia nas universidades de Oxford e de Cambridge, e depois
de Paris, começando a comentar, como todos os Mestres do seu tempo, as
Sentenças de Pedro Lombardo. As principais obras de Duns Scoto representam
precisamente o fruto maduro dessas lições, e tomam seu título dos lugares nos
quais lecionou: Opus Oxoniense (Oxford), Reportatio Cambrigensis (Cambridge),
Reportata Parisiensia (Paris). De Paris ele se afastou quando, após o começo de
um grave conflito entre o rei Felipe IV, o Belo e o Papa Bonifácio VIII, Duns
Scoto preferiu o exílio voluntário, ao invés de assinar um documento hostil ao
Sumo Pontífice, como o rei havia imposto a todos os religiosos. Assim, por amor
à Sé de Pedro, junto aos frades franciscanos, abandonou o país.
Queridos irmãos
e irmãs: este fato nos convida a recordar quantas vezes, na história da Igreja,
os crentes encontraram hostilidade e sofreram inclusive perseguições por causa
de sua fidelidade e de sua devoção a Cristo, à Igreja e ao Papa. Nós todos
contemplamos com admiração esses cristãos, que nos ensinam a proteger como um
bem precioso a fé em Cristo e a comunhão com o Sucessor de Pedro e, assim, com
a Igreja universal.
No entanto, as
relações entre o rei da França e o sucessor de Bonifácio VIII logo voltaram a
ser amistosas e, em 1305, Duns Scoto pôde voltar a Paris para lecionar teologia
com o título de Magister regens, que hoje seria
o de professor efetivo. Sucessivamente, os superiores o enviaram a Colônia como
professor do Studium teológico franciscano, mas ele morreu no dia 8 de novembro
de 1308, com apenas 43 anos de idade,
deixando, contudo, um número relevante de obras.
Por ocasião da
fama de santidade de que gozava, seu culto se difundiu em pouco tempo na ordem
franciscana e o venerável (na época da audiência) Papa João Paulo II quis
confirmá-lo solenemente beato no dia 20 de março de 1993, definindo-o como 'Cantor do Verbo Encarnado e Defensor da
Imaculada Conceição'. Nesta expressão está sintetizada a grande
contribuição que Duns Scoto ofereceu à história da teologia.
Antes de tudo,
meditou sobre o mistério da Encarnação e, ao contrário de muitos pensadores cristãos
da época, sustentou que o Filho de Deus teria se feito homem ainda que a
humanidade não tivesse pecado. Ele afirma, na Reportata Parisiensa: “Pensar que
Deus teria renunciado a esta obra se Adão não tivesse pecado seria totalmente
irracional. Digo, portanto, que a queda não foi a causa da predestinação de
Cristo, e que, ainda que ninguém tivesse caído, nem o anjo, nem o homem, nesta
hipótese Cristo teria estado ainda predestinado da mesma forma” (in III Sent.,
d. 7, 4). Este pensamento, talvez um pouco surpreendente, nasce porque, para
Duns Scoto, a Encarnação do Filho de
Deus, projetada desde a eternidade por parte de Deus Pai em seu plano de amor,
é cumprimento da criação e torna possível a toda criatura, em Cristo e por meio
d’Ele, ser cumulada de graça e dar louvor e glória a Deus na eternidade.
Duns Scoto, ainda consciente de que, na realidade, por causa do pecado
original, Cristo nos redimiu com sua Paixão, Morte e Ressurreição, reafirma que a Encarnação é a maior e mais bela obra
de toda a história da salvação e que esta não está condicionada por nenhum fato
contingente, mas é a ideia original de Deus de unir finalmente todo o criado
consigo mesmo na pessoa e na carne do Filho.
Fiel discípulo
de São Francisco, Duns Scoto amava contemplar e pregar o mistério da Paixão salvífica
de Cristo, expressão do amor imenso de Deus, que comunica com grandíssima
generosidade fora de si os raios da sua bondade e do seu amor (cf. Tractatus de
primo principio, c. 4). E este amor não se revela somente no calvário, mas
também na Santíssima Eucaristia, da qual Duns Scoto era devotíssimo e que via
como o sacramento da presença real de Jesus e como o sacramento da unidade e da
comunhão que nos induz a amar-nos uns aos outros e a amar a Deus como o Sumo
Bem comum (cf. Reportata Parisiensia, in IV Sent., d. 8, q. 1, n. 3).
Queridos irmãos
e irmãs: esta visão teológica, fortemente 'cristocêntrica', abre-nos à
contemplação, ao estupor e à gratidão: Cristo é o centro da história e do
cosmos, é Aquele que dá sentido, dignidade e valor à nossa vida. Como o Papa
Paulo VI em Manila, também eu, hoje, quero gritar ao mundo: '[Cristo] é o
revelador do Deus invisível, é o primogênito de toda criatura, é o fundamento
de tudo; é o Mestre da humanidade, é o Redentor; nasceu, morreu e ressuscitou
por nós; Ele é o centro da história e do mundo; é Aquele que nos conhece e que
nos ama; é o companheiro e o amigo da nossa vida… Eu nunca terminaria de falar
d’Ele' (Homilia, 29 de novembro de 1970).
Não somente o
papel de Cristo na história da salvação, mas também o de Maria é objeto da
reflexão do Doctor subtilis. Na época de Duns Scoto, a maior parte dos teólogos
opunha uma objeção, que parecia insuperável, à doutrina segundo a qual Maria
Santíssima esteve isenta do pecado original desde o primeiro instante da sua
concepção: de fato, a universalidade da Redenção levada a cabo por Cristo, à
primeira vista, poderia parecer comprometida por uma afirmação semelhante, como
se Maria não tivesse tido necessidade de Cristo e da sua redenção. Por isso, os
teólogos se opunham a esta tese. Duns Scoto, então, para fazer compreender esta
preservação do pecado original, desenvolveu um argumento que foi depois adotado
também pelo Papa Pio IX em 1854, quando definiu solenemente o dogma da
Imaculada Conceição de Maria. E este argumento é o da “redenção preventiva”,
segundo a qual a Imaculada Conceição
representa a obra de arte da Redenção realizada em Cristo, porque precisamente
o poder do seu amor e da sua mediação obteve que a Mãe fosse preservada do
pecado original. Portanto, Maria
está totalmente redimida por Cristo, mas já antes da sua concepção. Os
franciscanos, seus irmãos, acolheram e difundiram com entusiasmo esta doutrina,
e os demais teólogos – frequentemente com juramento solene – se comprometeram a
defendê-la e aperfeiçoá-la.
Beato João Duns Scoto |
A este respeito,
gostaria de evidenciar um dado que me parece importante. Teólogos de valor,
como Duns Scoto sobre a doutrina da Imaculada Conceição, enriqueceram com sua
contribuição específica de pensamento o que o Povo de Deus já acreditava
espontaneamente sobre a Beatíssima Virgem, e manifestava nos atos de piedade,
nas expressões da arte e, em geral, na vida cristã. Assim, a fé, tanto na
Imaculada Conceição como na Assunção corporal de Nossa Senhora já estava
presente no Povo de Deus, enquanto a teologia não havia encontrado ainda a
chave para interpretá-la na totalidade da doutrina da fé. Portanto, o Povo de
Deus precede os teólogos e tudo isso graças a esse sensus fidei sobrenatural,
isto é, essa capacidade infundida pelo Espírito Santo, que capacita para
abraçar a realidade da fé, com a humildade do coração e da mente. Neste
sentido, o Povo de Deus é “magistério que precede” e que deve ser depois
aprofundado e acolhido intelectualmente pela teologia. Que os teólogos possam
sempre colocar-se à escuta dessa fonte da fé e conservar a humildade e a
simplicidade dos pequenos! Recordei isso há alguns meses, dizendo: 'Existem
grandes doutos, grandes especialistas, grandes teólogos, mestres da fé, que nos
ensinaram muitas coisas. Penetraram nos pormenores da Sagrada Escritura (…),
mas não puderam ver o próprio mistério, o verdadeiro núcleo (…). O essencial
permaneceu escondido! (…) Pensemos em Santa Bernadete Soubirous; em Santa
Teresa de Lisieux, com a sua nova leitura da Bíblia ‘não científica’, mas que
entra no coração da Sagrada Escritura' (Homilia. Missa com os Membros da
Comissão Teológica Internacional, 1º de dezembro de 2009).
Finalmente, Duns
Scoto desenvolveu um ponto no qual a modernidade é muito sensível. Trata-se do
tema da liberdade e da sua relação com a vontade e com o intelecto. Nosso autor
sublinha a liberdade como qualidade fundamental da vontade, iniciando uma
postura de tendência voluntarista, que se desenvolveu em contraposição com o
chamado intelectualismo agostiniano e tomista. Para São Tomás de Aquino, que
segue Santo Agostinho, a liberdade não pode ser considerada uma qualidade inata
da vontade, mas o fruto da colaboração da vontade com o intelecto. Uma ideia da
liberdade inata e absoluta colocada na vontade que precede o intelecto, tanto
em Deus como no homem, corre o risco, de fato, de levar à ideia de um Deus que
não estaria ligado tampouco à verdade nem ao bem. O desejo de salvar a absoluta
transcendência e diversidade de Deus com uma afirmação tão radical e impenetrável
da sua vontade não leva em consideração que o Deus que se revelou em Cristo é o
Deus 'logos', que agiu e age repleto de amor a nós. Certamente, como afirma
Duns Scoto na linha da teologia franciscana, o amor supera o conhecimento e é
capaz de perceber cada vez mais o pensamento, mas é sempre o amor de Deus 'logos' (cf. Bento XVI, Discurso em Ratisbona, 'Enseñanzas de Benedicto XVI',
II [2006], p. 261). Também no homem a ideia de liberdade absoluta, colocada na
vontade, esquecendo o nexo com a verdade, ignora que a própria liberdade deve
ser libertada dos limites que lhe foram postos pelo pecado.
Falando aos
seminaristas de Roma, no ano passado, eu recordava que 'a liberdade, em todas
as épocas, foi o grande sonho da humanidade, desde o início, mas particularmente
na época moderna'. (Discurso ao Pontifício Seminário Maior Romano, 20 de
fevereiro de 2009). Mas precisamente a história moderna, além da nossa
experiência cotidiana, ensina-nos que a liberdade é autêntica e ajuda na
construção de uma civilização verdadeiramente humana somente quando está
reconciliada com a verdade. Quando se separa da verdade, a liberdade se
converte tragicamente em princípio de destruição da harmonia interior da pessoa
humana, fonte de prevaricação dos mais fortes e dos mais violentos e causa de
sofrimentos e de lutos. A liberdade, como todas as faculdades de que o homem
está dotado, cresce e se aperfeiçoa, afirma Duns Scoto, quando o homem se abre
a Deus, valorizando essa disposição à escuta da sua voz, que ele chama de
potentia oboedientialis: quando nos colocamos à escuta da Revelação divina, da
Palavra de Deus, para acolhê-la, então somos alcançados por uma mensagem que
enche de luz e de esperança nossa vida e somos verdadeiramente livres.
Queridos irmãos
e irmãs: o beato Duns Scoto nos ensina que, na nossa vida, o essencial é crer que Deus está perto de nós e nos ama
em Jesus Cristo; e cultivar, portanto, um profundo amor a Ele e à sua
Igreja. Desse amor nós somos as testemunhas nesta terra. Que Maria Santíssima
nos ajude a receber este infinito amor de Deus do qual gozaremos plenamente
pela eternidade no céu, quando finalmente nossa alma estará unida para sempre a
Deus, na comunhão dos santos.
[No final da
audiência, o Papa cumprimentou os peregrinos em vários idiomas. Em português,
disse:]
Queridos irmãos
e irmãs:
Dotado de uma
inteligência brilhante inclinada à especulação, que lhe valeu o título de 'Doutor
subtil', o Beato João Duns Escoto pode ter a sua vida resumida nas palavras
duma antiga inscrição que se encontra na sua tumba: 'A Inglaterra o acolheu; a
França o instruiu; Colônia, na Alemanha, conserva os seus restos; na Escócia
ele nasceu'. Atraído pelo carisma de São Francisco de Assis, ingressou na Ordem
dos Frades Menores, caracterizando a sua vida e pensamento por um forte
cristocentrismo, pela defesa da Imaculada Conceição de Maria e por um profundo
amor ao Papa. Sobre o Filho de Deus, alegava que este se teria encarnado mesmo
sem que a humanidade tivesse pecado, uma vez que a Encarnação estaria projetada
desde a eternidade por Deus Pai no seu plano amoroso. De fato, esse amor imenso
de Deus se revelaria na Paixão salvífica de Cristo e na Eucaristia, da qual
Duns Escoto afirmava ser o sacramento da Unidade e da Comunhão que leva a nos
amar uns aos outros e amar a Deus como Sumo Bem comum. Seguindo o sensus fidei
do Povo de Deus desenvolveu o tema da 'redenção preventiva' segundo o qual a
Imaculada Conceição representa a obra-prima da redenção operada por Cristo, ao
preservar Maria da mancha do pecado original. Morreu ainda jovem, com fama de
santidade, legando um número relevante de obras.
Uma saudação
cordial aos peregrinos de língua portuguesa, com votos de que sejais sobre esta
terra testemunhas do amor de Cristo, consolidando a fé que professais através
da visita às tumbas dos Apóstolos Pedro e Paulo. Que Deus vos abençoe"!
Beato João Duns Scoto, Cantor da Encarnação do Verbo e Defensor da Imaculada Conceição de Maria, rogai por nós! |
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