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sábado, 24 de janeiro de 2015

SÃO FRANCISCO DE SALES, Bispo e Doutor da Igreja.



No início de novembro de 1622, São Francisco de Sales, Bispo-Príncipe de Genebra, acompanhava o Duque da Sabóia na comitiva que ia de Chambéry a Avignon encontrar-se com o Rei Cristianíssimo, que era então o soberano francês Luís XIII. O Prelado aproveitou a ocasião para visitar os mosteiros da Visitação existentes no percurso, como co-fundador que era dessa Congregação. Assim, chegou no dia 11 ao de Belley.

Entre as freiras que, pressurosas, correram-lhe ao encontro, encontrava-se uma que ele muito estimava por sua inocência, virtude e simplicidade, e a quem por isso dera o nome de Clara Simpliciana. Esta, iluminada por luzes sobrenaturais, chorava desoladamente: “Oh, excelentíssimo Senhor!” disse-lhe sem subterfúgios, “vós morrereis neste ano! Eu vos suplico que peçais a Nosso Senhor e à Sua Santíssima Mãe que isso não ocorra”.

“Como, minha filha?!”, respondeu surpreso o Prelado. “Não, não o farei. Não vos alegrais pelo fato de eu ir descansar? Veja: estou tão cansado, com tanto peso, que já não posso comigo. Que falta vos farei? Tendes a Constituição e deixar-vos-ei Madre Chantal, que vos bastará. Ademais, não devemos pôr nossas esperanças nos homens, que são mortais, mas só em Deus, que vive eternamente”.

Tais palavras como que resumem a vida e a obra de São Francisco de Sales. Embora ele contasse então com apenas 56 anos de idade e aparentemente não estivesse doente, entregou sua grande alma a Deus três dias antes que o ano terminasse, conforme predissera Irmã Simpliciana... (1)


A grande provação

Francisco de Sales, primogênito entre os 13 filhos dos Barões de Boisy, nasceu no castelo de Sales, na Sabóia, em 21 de agosto de 1567. Por devoção dos pais ao Poverello de Assis, recebeu seu nome e, chegado ao uso da razão, o menino escolheu-o por patrono e guia.

A virtuosa baronesa dedicou-se ela mesma, com a ajuda de bons preceptores, à educação de sua numerosa prole. Para seu primeiro filho escolheu, por sua piedade e ciência, o Pe. Déage, o qual, até sua morte, foi para Francisco um pai espiritual e guia. Acompanhava-o sempre, mesmo a Paris, onde o jovem barão radicou-se durante seus estudos universitários no Colégio de Clermont, dos jesuítas.

Com um precoce senso de responsabilidade e intuito de fazer sempre tudo que fosse da maior glória de Deus, Francisco estudou retórica, filosofia e teologia com um empenho que lhe permitiu ser depois o grande teólogo, pregador, polemista e diretor de consciências que caracterizaram seu trabalho apostólico.

Francisco, como primogênito, era herdeiro do nome de família e continuador de sua tradição. Por isso, recebeu também lições de esgrima, dança e equitação. Convencia-se porém, cada vez mais, que Deus o chamava inteiramente a Seu serviço. Fez voto de castidade perfeita e colocou-se sob a proteção da Virgem das virgens.

Aos 18 anos, o jovem enfrentou a mais terrível provação de sua vida: uma tão violenta tentação de desespero, que lhe causava a impressão de ter perdido a graça divina e estar destinado a odiar eternamente a Deus com os réprobos. Tal obsessão diabólica perseguia-o noite e dia, abalando-lhe até a saúde.

Ora, para alguém que, como ele, desde o início do uso da razão não procurava senão amar ardentemente a Deus, tal provação era o que havia de mais terrível.

Seria necessário um ato heróico para dela livrá-lo e ele o praticou: não se revoltava contra Deus, mesmo se Ele lhe fechasse as portas do Céu, e pedia, nesse caso, para amá-Lo ao menos nesta Terra.

“Senhor!” -- exclamou certo dia na igreja de Saint Etienne des Grés, no auge de sua angústia --, “fazei com que eu jamais blasfeme contra Vós, mesmo que não esteja predestinado a ver-Vos no Céu. E se eu não hei de amar-Vos no outro mundo, concedei-me pelo menos que, nesta vida, eu Vos ame com todas as minhas forças!”.

Rezando depois humildemente o “Lembrai-Vos”, aos pés de Nossa Senhora, invadiu-lhe a alma uma tão completa paz e confiança, que a provação esvaiu-se como fumaça (2).




Calcando o mundo aos pés

Aos 24 anos, Francisco, com os estudos brilhantemente concluídos e já doutor em leis, voltou para junto da família. O pai escolhera para ele a jovem herdeira de uma das mais nobres famílias do lugar. Apesar de sua pouca idade, ofereceram ao jovem doutor o cargo de membro do Senado saboiano. Humanamente falando, não se podia desejar mais.

Para espanto do pai, seu primogênito recusou tanto um quanto outro oferecimento. Só à mãe, que sabia de sua entrega a Deus, e a um tio, cônego da catedral de Genebra, explicou Francisco o motivo desse ato tido por insensato.

Faleceu nesse tempo o deão da catedral de Chambéry. O cônego Luís de Sales imediatamente obteve do Papa que nomeasse seu sobrinho para o posto vacante. Com muita dificuldade o Barão de Boisy consentiu enfim que aquele, no qual depositava suas maiores esperanças de triunfo neste mundo, se dedicasse inteiramente ao serviço de Deus. Não podia ele prever que Francisco estava destinado à maior glória que um mortal pode atingir, que é a de ser elevado à honra dos altares; e, por acréscimo, como Doutor da Igreja!



Zelo anti-calvinista

Os cinco primeiros anos após sua ordenação, o Pe. Francisco consagrou-os à evangelização do Chablais, cidade situada na margem sul do lago de Genebra, convertendo, com o risco da própria vida, empedernidos calvinistas. Para isso, divulgava folhetos nos quais refutava suas heresias, contrapondo-lhes as lídimas verdades católicas. O missionário precisou fugir muitas vezes e esconder-se de enfurecidos hereges, e em algumas ocasiões só se salvou por verdadeiro milagre (3).

Assim, reconduziu ao seio da verdadeira Igreja milhares de almas seduzidas pela heresia de Calvino. Ao mesmo tempo dava assistência religiosa aos soldados do castelo de Allinges, os quais, apesar de católicos de nome, eram ignorantes em religião e dissolutos. Seu renome começava já a repercutir como grande confessor e diretor de consciências.

Em 1599, o deão de Chambéry foi nomeado Bispo-coadjutor de Genebra; e, três anos depois, com o falecimento do titular, assumiu a direção dessa diocese.


Apóstolo entre os nobres

Esse fato ampliou muito o âmbito de ação de D. Francisco de Sales. Fundou escolas, ensinou catecismo às crianças e adultos, dirigiu e conduziu à santidade grandes almas da nobreza, que desempenharam papel preponderante na reforma religiosa empreendida na época, como Madame Acarie (depois uma das primeiras religiosas carmelitas na França, morta em odor de santidade), Santa Joana de Chantal, com quem fundou a Visitação. Inúmeras donzelas da mais alta nobreza abandonaram o mundo, entrando nos mosteiros dessa nova congregação, na qual brilharam pelo esplendor de sua virtude.

Todos queriam ouvir o santo Bispo. Convidado a pregar em toda parte, era sempre rodeado de grande veneração, tornando-se necessário escolta militar para protegê-lo das manifestações do entusiasmo popular.

A família real da Sabóia não resistia à atração do Bispo-Príncipe de Genebra, convidando-o constantemente para pregar também na Corte. E não era a mais alta nobreza menos ávida que o povinho de ouvir aquele que já consideravam santo em vida.

Em 1608, ordenou e publicou as notas e conselhos que dera a uma sua prima por afinidade, a Sra. de Chamoisy, num livro que se tornaria imortal: Filotéia ou Introdução à Vida Devota. Essa obra foi ocasião de várias conversões e carreou muitas vocações para os conventos da Visitação.

São Francisco de Sales desenvolveu seu lema no extraordinário livro que escreveu para suas filhas da Visitação, a pedido de Santa Joana de Chantal, o célebre Tratado do Amor de Deus: “a medida de amar a Deus é amá-lo sem medida”.


Glorificado na Terra e no Céu

O Beato Pio IX declarou São Francisco de Sales como Doutor da Igreja. Os contemporâneos do Bispo-Príncipe de Genebra não tinham dúvidas a respeito de sua santidade. Santa Joana de Chantal, sua dirigida e cooperadora que o conheceu tão intimamente, escreveu: “Oh! meu Deus! Atrever-me-ei a dizê-lo? Sim, di-lo-ei: parece-me que nosso bem-aventurado pai era uma imagem viva do Filho de Deus, porque verdadeiramente a ordem e a economia desta santa alma era toda sobrenatural e divina. Muitas pessoas me disseram que, quando viam este bem-aventurado, parecia-lhes ver a Nosso Senhor na terra” (4). E São Vicente de Paulo, sempre que saia de algum encontro mantido com São Francisco de Sales, exclamava: “Ah! quão bom deve ser Deus quando o excelentíssimo Bispo de Genebra é tão bondoso! (5)

Em seu leito de morte, o resplendor de seu rosto, que já era visível em seus últimos anos de vida, aumentava por vezes muito mais, arrebatando de admiração os que o contemplavam.

Assim que faleceu, verdadeira multidão invadiu o convento das Visitandinas, em Lyon, na França, para oscular-lhe os pés, tocar-lhe tecidos em seu corpo, encostar-lhe rosários. Ao abrirem seu corpo, os médicos constataram que o fígado do Santo se petrificara com o esforço que fizera sempre para dominar seu temperamento sangüíneo, e conservar constantemente aquela suavidade e doçura, aparentemente tão naturais nele, que conquistavam os corações mais empedernidos.

O culto ao santo começou no próprio momento de sua morte. E foi sempre recompensado, algumas vezes com estupendos milagres.


Durante a peste em Lyon, as irmãs visitandinas não bastavam para distribuir ao povo pedaços de tecido tocados no corpo do santo. Em Orleans, a Madre de la Roche mergulhava uma relíquia do venerado Prelado em água, a qual era distribuída à multidão enquanto durou a peste: um tonel por dia em média. Em Crest e em Cremieux, os representantes da cidade foram à igreja da Visitação fazer, em nome da cidade, voto solene de ir em peregrinação ao sepulcro do Bispo, caso cessasse a peste. E todos foram ouvidos.
Foi Santa Joana de Chantal quem iniciou as gestões para o processo de canonização de seu pai espiritual. Recolheu seus escritos privados, cartas, mesmo rascunhos não terminados, e trabalhou com afinco nesse sentido. Escreveu a autoridades civis e eclesiásticas e mesmo a Roma, pedindo que urgissem o início do processo de beatificação.

Mas a alegria de vê-lo elevado à honra dos altares ela só a teria no Céu, pois a celeridade dos processos humanos ficavam muito aquém dos desejos de seu ardente coração.

São Francisco de Sales faleceu em 28 de dezembro de 1622, tendo sido canonizado em 19 de abril de 1665.

O Papa Pio IX declarou-o Doutor da Igreja em 7 de julho de 1877. E Pio XI, na encíclica Rerum omnium, de 1923, atribuiu-lhe o glorioso título de Patrono dos jornalistas e escritores católicos.

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Notas:
1 Mons. Bougaud, Juana Francisca Fremyot, Tipografia Católica, Madrid, 1924, vol. II, pp. 95/96.
2 - Cfr. Butler Vida de los Santos, edição em espanhol, México, D.F., 1968, vol. I., p. 199.
3 - Cfr. Joh J. Delaney, Dictionary of Saints, Doubleday, New York, 1980, p. 236.
4- Carta ao Pe. Juan de San Francisco, apud Mons. Bougaud, op.cit., vol. I p. 145.
5 - Apud Mons. Bougaud, id., pp. 142, 145.






CATEQUESE DO PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 2 de Março de 2011



São Francisco de Sales

Amados irmãos e irmãs

«Dieu est le Dieu du coeur humain» [Deus é o Deus do coração humano] (Tratado do Amor de Deus, I, XV): nestas palavras aparentemente simples vemos a característica da espiritualidade de um grande mestre, do qual gostaria de vos falar hoje: são Francisco de Sales, Bispo e Doutor da Igreja. Nasceu em 1567, numa região francesa de fronteira, filho do Senhor de Boisy, antiga e nobre família de Sabóia. Viveu entre dois séculos, XVI-XVII, e reuniu em si o melhor dos ensinamentos e das conquistas culturais do século que terminava, reconciliando a herança do humanismo com o impulso rumo ao absoluto, próprio das correntes místicas. A sua formação foi muito atenta; realizou os estudos superiores em Paris, dedicando-se também à teologia, e na Universidade de Pádua fez os estudos de jurisprudência, como desejava o pai, concluindo-os de modo brilhante, com uma licenciatura in utroque iure, direito canônico e direito civil. Na sua juventude harmoniosa, ponderando sobre o pensamento dos santos Agostinho e Tomás de Aquino, teve uma crise profunda que o levou a interrogar-se sobre a própria salvação eterna e acerca da predestinação de Deus no que se lhe referia, padecendo como verdadeiro drama espiritual as principais questões teológicas da sua época. Rezava intensamente, mas a dúvida atormentou-o de maneira tão forte, que durante algumas semanas praticamente não conseguiu comer nem dormir. No ápice da provação foi à igreja dos Dominicanos, em Paris, abriu o seu coração e orou assim: «Aconteça o que acontecer, Senhor, Vós que tendes tudo nas vossas mãos, e cujos caminhos são justiça e verdade; independentemente do que tiverdes estabelecido a meu propósito...; Vós que sois sempre Juiz justo e Pai misericordioso, amar-vos-ei, ó Senhor […] amar-vos-ei aqui, ó meu Deus, e esperarei sempre na vossa misericórdia, e repetirei sempre o vosso louvor... Ó Senhor Jesus, Vós sereis sempre a minha esperança e a minha salvação, na terra dos vivos» (I Proc. Canon., vol. I, art 4).
Francisco, então com vinte anos, encontrou a paz na realidade radical e libertadora do amor de Deus: amá-lo sem nada pedir em troca, confiando no amor divino; já não perguntar o que Deus fará de mim: amo-O simples e independentemente de quanto Ele me concede ou não. Assim encontrou a paz, e a questão da predestinação — sobre a qual se debatia naquela época — tinha sido resolvida, porque ele não buscava mais do que podia receber de Deus; amava-O simplesmente, abandonando-se à sua bondade. E este será o segredo da sua vida, que transparecerá na sua obra principal: o Tratado do Amor de Deus.
Vencendo as resistências do pai, Francisco seguiu o chamamento do Senhor e, no dia 18 de Dezembro de 1593, foi ordenado sacerdote. Em 1602 tornou-se Bispo de Genebra, num período em que a cidade era uma fortaleza do Calvinismo, a tal ponto que a sede episcopal se encontrava «no exílio», em Annecy. Pastor de uma diocese pobre e atormentada, na paisagem montanhosa da qual conhecia bem tanto a dureza como a beleza, ele escreve: «Encontrei-O [Deus] repleto de candor e suavidade, no meio das nossas montanhas mais altas e íngremes, onde muitas almas simples O amavam e adoravam com toda a verdade e sinceridade; cabritos-monteses e corças corriam aqui e ali, no meio de geleiras assustadoras, para anunciar os seus louvores» (Carta à Madre de Chantal, Outubro de 1606, em Oeuvres, Ed. Mackey, T. XIII, p. 223). E no entanto, a influência da sua vida e do seu ensinamento na Europa dessa época e dos séculos seguintes parece imensa. É apóstolo, pregador, escritor, homem de ação e de oração; comprometido na realização dos ideais do Concílio de Trento; empenhado na controvérsia e no diálogo com os protestantes, experimentando cada vez mais, para além do necessário confronto teológico, a eficácia da relação pessoal e da caridade; encarregado de missões diplomáticas a nível europeu, e de tarefas sociais de mediação e de reconciliação. Mas sobretudo, são Francisco de Sales é guia de almas: do encontro com uma jovem, a senhora de Charmoisy, encontrará inspiração para escrever um dos livros mais lidos na era moderna, a Introdução à vida devota; da sua profunda comunhão espiritual com uma personalidade extraordinária, santa Joana Francisca de Chantal, nascerá uma nova família religiosa, a Ordem da Visitação, caracterizada — como o santo desejava — por uma consagração total a Deus, vivida na simplicidade e na humildade, a cumprir extraordinariamente bem as tarefas ordinárias: «…quero que as minhas Filhas — escreve — não tenham outro ideal, a não ser o de glorificar [Nosso Senhor] com a sua humildade» (Carta a mons. de Marquemond, Junho de 1615). Faleceu em 1622, com cinqüenta e cinco anos de idade, depois de uma existência marcada pela dureza dos tempos e da obra apostólica.

A vida de são Francisco de Sales foi relativamente breve, mas vivida com grande intensidade. Da figura deste santo emana uma impressão de rara plenitude, demonstrada na tranquilidade da sua investigação intelectual, mas também na riqueza dos seus hábitos, na «docilidade» dos seus ensinamentos, que tiveram uma grande influência sobre a consciência cristã. Da palavra «humanidade» ele encarnou várias acepções que, tanto hoje como ontem, este termo pode adquirir: cultura e cortesia, liberdade e ternura, nobreza e solidariedade. No aspecto tinha algo da majestosidade da paisagem em que viveu, conservando também a sua simplicidade e naturalidade. As antigas palavras e imagens com que se expressava ressoam inesperadamente, até aos ouvidos do homem contemporâneo, como uma língua nativa e familiar.

Na Filotéia, destinatária ideal da sua Introdução à Vida Devota (1607), Francisco de Sales dirige um convite que, nessa época, podia parecer revolucionário. Trata-se do convite a pertencer completamente a Deus, vivendo em plenitude a presença no mundo e as tarefas da sua condição. «A minha intenção é de instruir aqueles que vivem nas cidades, no estado conjugal, na corte […]» (Prefácio da Introdução à Vida Devota). O Documento com que o Papa Pio ix, mais de dois séculos depois, o proclamará Doutor da Igreja, insistirá sobre esta ampliação da chamada à perfeição, à santidade. Nele está escrito: «[A verdadeira piedade] chegou a penetrar até no trono dos reis, na tenda dos chefes dos exércitos, no pretório dos juízes, nos escritórios, nas oficinas e nas cabanas dos pastores […]» (Breve Dives in misericordia, 16 de Novembro de 1877). Assim nascia aquele apelo aos leigos, o cuidado pela consagração das realidades temporais e pela santificação da vida diária, sobre o qual insistirão depois o Concílio Vaticano II e a espiritualidade do nosso tempo. Manifestava-se o ideal de uma humanidade reconciliada, na sintonia entre ação no mundo e oração, entre condição secular e busca da perfeição, com a ajuda da Graça de Deus, que permeia o humano e, sem o destruir, o purifica, elevando-o às alturas divinas. A Teótimo, o cristão adulto, espiritualmente maduro, ao qual dirige alguns anos depois o seu Tratado do Amor de Deus (1616), são Francisco de Sales oferece uma lição mais complexa. Ela supõe, no início, uma visão específica do ser humano, uma antropologia: a «razão» do homem, aliás, a sua «alma razoável», é aí vista como uma construção harmoniosa, um templo subdividido em vários espaços, ao redor de um centro ao qual ele chama, juntamente com os grandes místicos, «cimo», «ponta» do espírito, ou «fundo» da alma. É o ponto em que a razão, percorrendo todas as suas fases, «fecha os olhos» e o conhecimento se torna um só com o amor (cf. livro I, cap. XII). Que o amor, na sua dimensão teologal e divina, seja a razão de ser de todas as realidades, numa escada ascendente que não parece conhecer fraturas nem abismos, são Francisco de Sales resumiu-o nesta frase célebre: «O homem é a perfeição do universo; o espírito é a perfeição do homem; o amor é a do espírito, e a caridade a do amor» (Ibid., livro X, cap. I).

Num período de intenso florescimento místico, o Tratado do amor de Deus é uma verdadeira suma, e ao mesmo tempo uma obra literária fascinante. A sua descrição do itinerário rumo a Deus começa a partir do reconhecimento da «inclinação natural» (Ibid., livro I, cap. XVI), inscrita no coração do homem, também do pecador, a amar a Deus acima de todas as coisas. Segundo o modelo da Sagrada Escritura, são Francisco de Sales fala da união entre Deus e o homem, desenvolvendo toda uma série de imagens de relação interpessoal. O seu Deus é pai e senhor, esposo e amigo, tem características maternas e de nutriz, é o sol do qual até a noite é uma misteriosa revelação. Este Deus atrai o homem a Si com vínculos de amor, ou seja, de verdadeira liberdade: «Pois o amor não tem forçados nem escravos, mas reduz tudo à sua obediência com um vigor tão delicioso que, se nada é tão forte como o amor, nada é tão amável como a sua força» (Ibid., livro I, cap. VI). No Tratado do nosso santo encontramos uma meditação profunda sobre a vontade humana e a descrição do seu fluir, passar e morrer para viver (cf. ibid., livro IX, cap. XIII) no abandono completo não apenas à vontade de Deus, mas àquilo que é do seu agrado, ao seu «bon plaisir», ao seu beneplácito (cf. ibid., livro IX, cap. I). No ápice da união com Deus, além dos arrebatamentos da êxtase contemplativa, coloca-se aquele fluxo de caridade concreta, que se faz atenta a todas as necessidades do próximo, à qual ele chama «êxtase da vida e das obras» (Ibid., livro VII, cap. VI).

Lendo o livro sobre o amor de Deus e ainda mais as numerosas cartas de guia e de amizade espiritual, compreende-se bem como são Francisco de Sales foi um grande conhecedor do coração humano. A santa Joana de Chantal, a quem escreve: «[…] Eis a regra da nossa obediência, que te escrevo com caracteres grandes: fazer tudo por amor, nada por força — amar mais a obediência do que temer a desobediência. “Deixo-te o espírito de liberdade, não aquele que exclui a obediência, porque ela é a liberdade do mundo; mas aquele que exclui a violência, a ansiedade e o escrúpulo» (Carta, 14 de Outubro de 1604). Não é por acaso que, na origem de muitas formas da pedagogia e da espiritualidade do nosso tempo, encontramos precisamente o vestígio deste mestre, sem o qual não teriam existido são João Bosco, nem o heróico «pequeno caminho» de santa Teresa de Lisieux.


Caros irmãos e irmãs, num período como o nosso que procura a liberdade, mesmo com violência e inquietação, não deve passar despercebida a atualidade deste grande mestre de espiritualidade e de paz, que transmite aos seus discípulos o «espírito de liberdade», aquela verdadeira, no ápice de um ensinamento fascinante e completo sobre a realidade do amor. São Francisco de Sales é uma testemunha exemplar do humanismo cristão; com o seu estilo familiar, com parábolas que às vezes têm as asas da poesia, recorda que o homem traz inscrita no profundo de si mesmo a saudade de Deus, e que somente nele encontra a alegria autêntica e a sua realização mais completa.

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