Decidido a nunca mais servir um soberano que pudesse morrer, o Duque de Gandia abandonou a corte para se pôr nas mãos de Santo Inácio. Na Companhia de Jesus, haveria de ser grande na santidade, no governo e na dor.
A imperial
Toledo trocou as habituais vestes festivas pelo negro de luto naquele 1º de
maio de 1539. A morte viera bater às portas de suas muralhas, ceifando a
preciosa vida da imperatriz Isabel, cujo passamento deixou no esposo, Carlos V,
e em todo o povo espanhol, uma tristeza inconsolável.
O formoso
semblante da mais bela soberana das cortes europeias não mais encantaria a
nobreza e a plebe. Só cabia sepultá-la junto a seus avós Fernando e Isabel, os
Reis Católicos. Partiu, pois, para Granada um faustoso préstito conduzindo seus
restos mortais.
O imperador
confiou os cuidados do traslado a um homem da máxima confiança, para que nenhum
imprevisto viesse aumentar sua dor, de si já tão grande. Era ele Francisco de
Borja, Marquês de Lombay, dedicado vassalo da mais alta linhagem, o qual
lastimava como ninguém o fato de a imperatriz ter deixado esta vida no auge de
sua esplendorosa existência. Silencioso e reflexivo, avançava à testa do
cortejo que cruzou quase metade do país, chegando a Granada, onde o aguardava o
monarca.
"Nunca mais
servirei um senhor que possa vir a morrer"!
O longo trajeto
propiciou ao jovem marquês graves e profundas meditações sobre o fim último do
homem, semeando bons propósitos em seu interior, pois não em vão promete o
Eclesiástico: "Pensa nos teus
novíssimos e não pecarás eternamente" (Eclo 7, 40). O acontecido fez
evanescer a seus olhos as esperanças até então depositadas nas honras e
dignidades deste mundo, uma vez que à sua senhora de nada serviram quando Deus
a chamou para junto de Si.
Mas o instante
decisivo ainda estava por vir. Com efeito, "depois
de morta, a imperatriz pagou os serviços que lhe prestara em vida o marquês;
estando viva, nunca fez a nosso Dom Francisco tão grande bem como fez sendo já
defunta, como se verá pelo que em seguida aconteceu".1
Ao chegar a
Granada, precisava o marquês testemunhar perante os notários ser realmente
aquele o corpo da soberana. Mas ao abrir-se o caixão, espalhou-se no mesmo
instante por todo o recinto o pior dos odores e constatou-se ser impossível
reconhecer naquele cadáver, já putrefato, os traços daquela cuja beleza fora
objeto da admiração geral.
Diante do cadáver putrefato da rainha, destituído agora de
toda beleza, o piedoso duque tomou a firme decisão:
"nunca mais servirei um senhor que possa vir a morrer"!
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Ali mesmo,
depois de cumprir sua dolorosa obrigação, Francisco de Borja consumou com uma
resolução concreta as inspirações vindas da graça. Uma famosa sentença, tantas
vezes repetida pelos seus biógrafos, teria selado essa decisão: "Nunca
mais servirei um senhor que possa vir a morrer!".
E assim como
Isabel perecera para esta vida, o futuro Duque de Gandia estava, dali em
diante, morto para o mundo. Continuou ainda, é verdade, desempenhando suas
obrigações e frequentando a corte, porque as circunstâncias o impediam de
abandoná-la, mas isso seria apenas uma questão de tempo.
Tal mudança
decisiva de espírito deu-se quando ele contava 28 anos, dividindo sua
existência em duas fases bem distintas. O cristão exemplar que fora até então,
transformou-se interiormente no santo religioso cuja virtude "lavaria a mancha que outros tinham
lançado sobre o seu nome de família".2
Homem de confiança do imperador
Francisco de
Borja y Aragón-Gurrea nasceu em 28 de outubro de 1510, no palácio que a família
possuía em Gandia, a uns 60 km de Valência. Era filho primogênito do terceiro
Duque de Gandia e estava aparentado por linha materna com o Rei Católico,
Fernando I de Aragão. Ainda menino perdeu a progenitora e conviveu muito pouco
com o pai, homem intensamente dedicado aos assuntos do Estado.
Após ter
recebido a mais completa educação que o século de ouro espanhol podia oferecer,
foi enviado a servir como pajem na corte, onde desempenhou brilhante papel. Não
tardou o imperador Carlos em perceber o valor desse jovem, no qual estavam
reunidas todas as qualidades que se poderia esperar de alguém de sua linhagem,
sustentadas e sublimadas por notável humildade.
Aos 18 anos, por
conselho da imperatriz, Francisco contraíra núpcias com uma das mais nobres e
virtuosas damas da corte: Dona Leonor de Castro Melo e Menezes. Com ela teve
oito filhos, todos educados segundo seu exemplo de justiça e piedade.
Por ocasião
desse casamento, Carlos V outorgou-lhe o título de Marquês de Lombay e nomeou-o
Cavalariço-Mor da imperatriz. E, pouco depois da morte da soberana, confiou-lhe
o encargo extremamente árduo e delicado de Vice-Rei da Catalunha, porque "julgou Borja competente para começar
pelo governo mais difícil".3
Não eram poucas
nem de pouca monta as obrigações que o espinhoso cargo lhe impunha. Porém, em
meio a todas elas, o Marquês mantinha-se assíduo na oração e cultivava o costume da Comunhão diária,
séculos antes de este se tornar comum entre os fiéis.
Antes mesmo de se tornar religioso, Francisco de Borja era
um católico piedoso e fervoroso, cumpridor fiel cumpridor
de seus deveres cristãos. Era chamado de "o duque santo".
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"O Duque Santo"
Com o
falecimento de seu pai, em 1543, Francisco de Borja tornou-se o novo Duque de
Gandia, título que trazia anexa a dignidade de Grande de Espanha, da qual
desfrutavam apenas os 25 principais nobres do reino. Logo perceberam seus súditos
como eram beneficiados em todos os sentidos pelo invulgar governante e passaram
a chamá-lo de "o Duque Santo".
Transparecia nele a bondade de sua alma "harmoniosa,
serena, digna e delicada", qualidades para as quais contribuíam "sua nobre educação, sua fervorosa,
implacável e constante ascese".4
Mas o anseio de
abandonar o mundo falava em seu coração mais forte do que todas as grandezas
terrenas. E a morte da esposa em 1546, quando ele contava apenas 36 anos, veio
possibilitar a realização de seus desejos de entregar-se por inteiro à vida de
perfeição.
Um fato ocorrido
bem mais tarde, quando esteve em visita a Portugal, já como membro da Companhia
de Jesus, ilustra o impacto provocado por essa decisão. Convidado de improviso
a pregar na Catedral de Évora, o santo lamentou não estar preparado para tanto
e pediu licença para não fazê-lo. O Cardeal Infante Dom Henrique, contudo,
saiu-se com esta réplica: "Para
sermão basta verem minhas ovelhas no púlpito um homem que deixou tanto por
Deus".5
Admitido em segredo na Companhia
Nessa época,
outro espanhol de nobre estirpe, que tudo abandonara para dedicar-se
exclusivamente ao serviço de Deus, consolidava em Roma a sua providencial
fundação, alicerçando com sabedoria uma obra iniciada com audácia: era Inácio
de Loyola expandindo a Companhia de Jesus.f
Francisco de
Borja admirava essa nova família espiritual, então nos seus primeiros anos de
existência. Certo dia de 1541, na qualidade de Vice-Rei da Catalunha, escreveu
a Inácio uma carta. Tendo-a em mãos, o santo fundador proferiu um surpreendente
vaticínio: "Quem acreditaria que,
com o tempo, este senhor entrará na Companhia e virá governá-la em Roma?".6
Cerca de sete
anos depois, o Duque de Gandia - já viúvo e ignorando essa previsão - procurava
saber em qual Ordem religiosa Deus o queria. Na dúvida, consultou seu
confessor, o franciscano Frei João Texeda, o qual lhe respondeu: "Vossa Senhoria deve entrar na
Companhia de Jesus".7 O conselho realmente vinha de encontro às suas
aspirações interiores, fato que o levou a escrever a Santo Inácio, e este o
admitiu logo na Ordem Jesuíta. Recomendou-lhe, porém, manter por enquanto tudo
em segredo até que estivesse livre das obrigações inerentes ao ducado de Gandia
e à sua família.
Assim, ele fez a
profissão em fevereiro de 1548, dando mostras de impressionante compenetração,
mas continuou a exercer suas importantes funções públicas. Em agosto de 1550,
recebeu o doutorado, finalizando os estudos preparatórios para o sacerdócio,
assinou seu testamento e transferiu provisoriamente o governo do Ducado de
Gandia ao seu herdeiro, Dom Carlos.
Encontro com Santo Inácio
Gozando agora da
plena liberdade dos filhos de Deus, Francisco dirigiu-se a Roma, a fim de
conhecer Inácio de Loyola. Partiu com sobrenatural sofreguidão por chegar logo,
mas não pôde esquivar-se de uma ilustre comitiva de clérigos e nobres. Em fins
de outubro, chegava à porta da Casa Professa dos Jesuítas, onde o esperava
Santo Inácio, à frente de toda a Comunidade. Os dois santos prostraram-se de
joelhos um diante do outro, e Francisco osculou repetidas vezes as mãos de seu
fundador.
De Roma,
escreveu ao imperador Carlos V, em 10 de janeiro de 1551: "Tendo, pois, após a morte da Duquesa, pesado minha escolha, e
tendo pensado durante quatro anos, e tendo feito orar, por esta intenção,
diversos servos de Deus, e crescendo cada dia o meu desejo e desaparecendo as
trevas do meu coração, embora eu não merecesse ser empregado na vinha do
Senhor, sobretudo chegando tão tarde e limitando-se até agora a minha tarefa de
arrancar as vides, que outros plantavam; mesmo assim, sendo sem medida a
bondade divina e sua clemência um oceano imenso, aprouve-lhe decidir seus
servos da Companhia de Jesus a admitir-me em sua Ordem, na qual desde há muito
eu desejo viver e morrer".8
Um mês depois,
em carta a Guilherme de Prat, Bispo de Clermont, demonstrou o quanto estava
convicto do importante papel da Ordem Jesuíta naqueles que foram os anos mais
candentes da Contrarreforma: "A
divina sabedoria prodigalizou, noutros tempos, outros meios de prover às
necessidades da Igreja; hoje parece ter escolhido esta Companhia para que pela
palavra, pelo exemplo e por todas as obras de caridade, ela socorra a sua
Esposa".9
Convívio com o fundador
Certamente quis
Deus compensar os dissabores sofridos por Santo Inácio nos primeiros anos da
Ordem recém-fundada, ao mandar-lhe este filho de ouro. Todos em Roma
mostravam-se assombrados com sua despretensão. Esta o levava, por exemplo, a
servir a mesa e a lavar as vasilhas com a mesma naturalidade com a qual pouco
antes governava a Catalunha. E nada podia encantar mais os circunstantes do que
ouvi-lo falar sobre Nossa Senhora, pois, quando o fazia, tinha o dom de
aumentar a devoção dos ouvintes.
Intensos e
fecundos foram os meses passados junto ao fundador. Como São Francisco Xavier,
foi este outro Francisco um daqueles que mais profundamente conheceu seu
coração e de modo mais integral soube espelhá-lo no próprio. Seguindo o exemplo
de fidelidade a Santo Inácio dado pelo Apóstolo das Índias, Francisco de Borja
foi confidente e, mais tarde, executor dos grandes anseios do fundador, pois se
sabe que neste período inicial, "os dois santos se comunicaram longamente
seus projetos".10 Ao longo de algum tempo de convívio, pôde ele receber o
carisma inaciano em sua pureza e plenitude.
Grande também na hora da dor
De volta à
Espanha, o Duque de Gandia renunciou perante tabelião público a todos os seus
Estados, títulos e bens, revestiu-se do traje jesuíta e foi ordenado sacerdote
em 23 de maio de 1551.
Celebrou sua primeira Missa pública no
mês seguinte, perante uma assistência de dez mil fiéis, e todos os que
comungaram quiseram receber a Sagrada Eucaristia das suas mãos. Peregrinou ao
Castelo de Loyola, em cujo oratório celebrou uma Missa, e por fim se
estabeleceu em Onhate, no País Basco, bem longe da corte e dos seus familiares.
Apesar de seus
anelos, não conseguiu passar despercebido naquelas paragens, inclusive porque
seu apostolado arrastava multidões. Mas o êxito inicial não impediu a chegada
de indizíveis sofrimentos que se entrelaçaram num quadro dramático.
Uns advinham da hostilidade do rei
Felipe II, que tinha queixas contra a família Borja, outros decorriam de
problemas internos da Companhia, aos quais vieram somar-se uma longa série de
enfermidades. Provando-o assim, a Providência manifestava, por um prisma mais
elevado, a predestinação de Francisco, que foi grande em tudo, especialmente na
dor.
Sucessor de Santo Inácio
Após a morte de
Santo Inácio, em 1556, o padre Diego Laynez governou a Companhia por nove anos,
dois como Vigário Geral e sete como Superior Geral, vindo a falecer em 1565. Em
seu leito de morte, fitou longamente o padre Francisco de Borja, numa
premonição do futuro que o aguardava. As eleições realizadas nesse mesmo ano
confirmaram seu mudo presságio, pois foi ele o escolhido. A unanimidade com que
todos se voltaram para o Santo constitui uma prova de estarem convictos do
quanto este representava o espírito da Instituição.
Deste período de
sua vida chegaram até nós preciosos documentos, como seu diário e cartas. As
missivas por ele redigidas enquanto Geral revelam o perfil do santo e do homem
de governo: em linguagem clara e direta, oferecem diretrizes dadas por quem
conhece tanto as agruras dos caminhos quanto a fragilidade do homem que os
trilha.
Aos superiores
locais, por demais severos com os subalternos, exigia maior brandura e
afabilidade. Já aos missionários tentados de desânimo pelas fadigas do
apostolado, não escondia o quanto seu coração de pai era sensível à bravura de
que vinham dando mostras: "Animem-se ainda pensando na consolação que nós,
na Europa, sentimos, louvando o Senhor pela coragem que Ele dá aos que lá longe
lutam por seu amor",11 escreveu em 1568 ao padre Gregório Serrano, em missão
no Brasil recém-descoberto.
Entretanto,
diante de religiosos empedernidos sabia valer-se da autoridade facultada por
seu cargo e não admitia contemporizações. Em caso de necessidade, comenta um de
seus biógrafos, "era enérgico, dizendo que Santo Inácio preferia ver sair
da Companhia um sujeito mau a ver entrar nela um bom".12
Partida para a glória eterna
Por sete anos
governou a Companhia de Jesus. Neles coube-lhe a grave responsabilidade de
formar a primeira geração de religiosos que não conheceu o fundador, tarefa
desempenhada com exímia fidelidade. Sob seu generalato, a Ordem adquiriu
estabilidade, abriu numerosos colégios e consolidou-se nas missões. Em tão
curto período, 66 jesuítas foram martirizados, entre os quais Padre Inácio de Azevedo
e seus 39 companheiros.
O falecimento de
São Francisco de Borja, ocorrido em Roma, na madrugada de 1º de outubro de
1572, foi uma partida cheia de alegria para a Pátria Eterna, própria de quem
deu tudo por Deus e estava prestes a receber d'Ele incomparavelmente mais.
Aguilhão na consciência dos mundanos e poderosos
Ao gênio
inspirado do quarto Duque de Gandia deve a Santa Igreja dois notáveis
benefícios: a instituição das casas de noviciado, adotada por outras ordens e
congregações religiosas à vista dos bons resultados colhidos pelos jesuítas, e
a fundação da Universidade Gregoriana de Roma.
Num plano menos
imediato, que os séculos de distância nos permitem distinguir melhor, vemos
nele um expoente da Contrarreforma, cujo exemplo foi um aguilhão na consciência
dos mundanos e poderosos de seu tempo, os quais, ao abrirem as portas de suas
almas para o fermento neopagão do Renascimento, "já eram os legítimos
precursores do homem ganancioso, sensual, laico e pragmático de nossos dias, da
cultura e da civilização materialista em que cada vez mais vamos
imergindo".13
Hoje, embora
nosso contexto sociocultural seja diverso daquele no qual viveu este Grande de
Espanha e Geral da Companhia de Jesus, sua entusiasmante fidelidade a Cristo e
à Igreja nos convida a pedir homens que façam, na época presente e com os
métodos atuais, obras ainda maiores às realizadas por ele na sua. Roguemos que,
do Céu, São Francisco de Borja nos conduza às mais ousadas e corajosas
iniciativas evangelizadoras que a maior glória de Deus tanto merece.
(Revista
Arautos do Evangelho, Set/2011. n. 117, p. 32 a 37).
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